Cultura

entrevista com Claudia Manzo

“Defendo meu lugar de mulher imigrante que pode ir e vir e tem plena liberdade de movimentação”

A cantora e compositora chilena vive há quase 15 anos no Brasil e fala da riqueza em experenciar realidades diferentes para construir novas versões dela e de sua música. Por Graziela Salomão

Foto: Luciana Diniz

“O mundo não é. O mundo está sendo.” A frase do educador e filósofo brasileiro Paulo Freire poderia traduzir a trajetória da cantora e compositora chilena Claudia Manzo, uma artista em movimento, tanto no sentido literal quanto simbólico. Cada cidade traz um novo som para a artista. Em tempos de identidades contestadas, onde a migração é criminalizada e o “ir e vir” se torna um privilégio de poucos, Claudia vive seu deslocamento como forma de resistência. E de encantamento. 

A primeira vez que pisou no Brasil foi de férias, mas dois meses não seriam suficientes. Já se passaram mais de quinze anos, com paradas por Belo Horizonte, Salvador e, agora, São Paulo. “Acho que conheço só uns 40% do Brasil. Falta muito. Esse é um país muito rico”, diz Claudia, com um suave sotaque de quem pertence a vários lugares ao mesmo tempo. Parceira do BaianaSystem nos últimos dois álbuns da banda, Claudia fez seu début em “Oxeaxeexu” (2021). Em “O Mundo Dá Voltas” (2024), ela reaparece, potente, ao lado de outras vozes como Gilberto Gil e Anitta. “Ser a única mulher da banda é uma experiência que traz muita responsabilidade porque não sou apenas a única do grupo, mas também uma mulher estrangeira em uma banda que é superimportante culturalmente para o Brasil”, comenta.

Essa conexão cultural abrange muito mais do que música, mas também um sentimento de unidade do território. Claudia é esperançosa em relação a isso. “A gente precisa conversar sobre a questão geográfica, histórica e se compreender como América do Sul, um território que foi colonizado, que tinha certos costumes similares e povos originários muito potentes. Falta falar sobre se sentir como um território único que compartilha muita coisa”, afirma.

Nesta entrevista para o Mulheres e a Cidade, Claudia Manzo não fala apenas de música, mas de identidade, fronteiras e pertencimento. E da urgência de construir pontes sonoras, políticas e afetivas entre os povos latino-americanos.

Claudia Manzo ao lado do BaianaSytem | Foto: Divulgação

Graziela Salomão: Como foi o convite para cantar no BaianaSystem? E como é ser a única mulher do grupo?
Claudia Manzo: Na revolta chilena de outubro de 2019, entrei em contato com o Russo Passapusso [vocalista do BaianaSystem]. Já estava morando no Brasil e recebia notícias do Chile que não chegavam aqui. Entrei no Instagram e mandei mensagem pra ele falando sobre o que acontecia por lá. Russo me respondeu, me pediu pra explicar melhor a situação e começamos a compartilhar informação sobre meu país. Russo me perguntou se eu cantava ou fazia música e eu disse que sim. Disse que sim. Ele se interessou, perguntou se eu faria letra e melodia para uma base já pronta e me enviou o instrumental de Capucha, que tem a letra inspirada na luta dos povos no Chile, em especial das mulheres. Veio a pandemia, a gente se distanciou um pouco, mas em algum momento ele me chamou para dar continuidade à música. Gravamos para o disco “Oxeaxeexu”. Participei também com [a canção] Pachamama, em que fiz uma reza e toquei cuantro, um instrumento de cordas venezuelano da América Central. Ser a única mulher da banda é uma experiência que traz muita responsabilidade porque não sou apenas a única do grupo, mas também uma mulher estrangeira em uma banda que é superimportante culturalmente para o Brasil. Sempre me questiono porque tenho sido a única mulher em várias bandas e projetos que passei. Sinto que é um lugar que gosto, celebro, honro e tento dar o melhor sempre. Tento, de algum jeito, contemplar questões que são do universo das mulheres e importantes de serem ditas. Me sinto feliz por esse lugar.

GS: O que você destaca desse novo trabalho “O Mundo Dá Voltas”?
CM: Gosto muito de colocar a natureza cíclica das coisas, como o começo se entrelaça com o fim e que fim é esse? Que tipo de tempo é aquele que a gente habita, como o medimos. Isso é uma das coisas que destaco nesse trabalho porque tem composições muito antigas, tem pessoas de diversas gerações participando dele, tem uma banda que está com uma maturidade e ao mesmo tempo é muito nova. É uma obra que fica no lugar do atemporal. É incrível a quantidade de participações deste disco e os outros tipos de arranjo que ele traz. É um disco muito interessante nesse sentido. 

GS: É um disco sobre pessoas. O que esse encontro com tantos artistas traz para você?
CM: Esse encontro traz aprendizado. Me vejo aprendiz com esses artistas que têm diferentes experiências de vida, de arte, de construção artística. Feliz em poder compreender esses outros universos e fazer parte disso. É um privilégio enorme estar com artistas consagrados da música brasileira. Fico honrada de fazer parte e tento tirar alguma coisa para seguir amadurecendo como pessoa e, principalmente, como artista.

Em cima do Navio Pirata no Carnaval deste ano | Foto: Pedro Soares

GS: As parcerias entre os músicos da América Latina ainda não são tão visibilizadas como deveriam ou são muito escassas. O que precisa ser feito para conectarmos essa musicalidade tão complementar?
CM: Sinto que a gente precisa conversar sobre a questão geográfica, histórica de se compreender como América do Sul, um território que foi colonizado, que tinha certos costumes similares e povos originários muito potentes. Falta falar sobre se sentir como um território único que compartilha muita coisa. Vejo de fora que o Brasil precisa se sentir de fato pertencente à Sulamérica e se identificar com os povos vizinhos. Se ver nesse lugar talvez traga cada vez mais a possibilidade de troca. Essa troca e diálogo já está acontecendo, mas para ser um pouco mais massivo acho que é isso. O BaianaSystem já faz essa parte, aproxima, dialoga. Salvador tem esse diálogo forte com a música latino-americana, o reggae, a cumbia, a salsa, o merengue. Acho que Salvador se identifica um pouco mais com esse ser latino e sul-americano e o diálogo vai bem. Talvez em outros territórios do Brasil seja importante observar onde está essa identidade e aí possam acontecer diálogos tão potentes e fortes com o resto da Latinoamérica a partir desse sentido de identificação.

“A mulher latino-americana é exemplo de força porque já sofreu demais, foi vítima de tanto abuso, apagaram tantas vezes as nossas histórias. É um exemplo da ressurreição, de morrer e voltar pra vida com mais força, com mais resiliência. As mulheres estão transformando o futuro.”

GS: Seu primeiro álbum se chama “América para uma Mirada Feminina”. Como acha que as mulheres latinas estão transformando o nosso continente?
CM: As mulheres estão transformando o nosso continente a partir da sua coragem e força de luta. Temos visto várias movimentações de uns anos para cá, mas hoje vemos manifestações políticas muito fortes a partir  de um olhar feminista que fala sobre diversas lutas. O feminismo é muito interessante nesse sentido porque inclui não só a luta da mulher, mas a de várias outras situações que nos atravessam: a luta indígena dos povos originários, a luta antirracial, a luta pelos direitos LGBTQIAP+. Acho sempre que através da coragem, da resiliência, da luta, da resistência, as mulheres têm transformado e continuarão transformando nosso continente e nossa história porque não dá pra apagar a voz de uma mulher. A mulher latino-americana é exemplo de força porque já sofreu demais, foi vítima de tanto abuso, apagaram tantas vezes as nossas histórias. É um exemplo da ressurreição, de morrer e voltar pra vida com mais força, com mais resiliência. As mulheres estão transformando o futuro. Tem muita resistência, muitas forças contrárias a isso, mas é preciso seguir falando do nosso leventa e se colocando nesse lugar de que ainda falta muito por conquistar e que a gente precisa lutar até que todas sejam livres.

GS: Você é ligada a causas relacionadas ao feminismo e à política latino-americana. Como se aproximou dessas questões? E como vê o papel do artista em falar sobre esses assuntos?
CM: Sempre me fazem perguntas relacionadas a isso e nunca pensei que eu queria ir por esse caminho. É uma coisa natural porque tem relação com entender que a gente vive numa sociedade onde temos muitas carências, falta igualdade. Se eu pudesse escolher, não ficaria falando sobre política, mas tudo é política. Fico comovida com desigualdade, com injustiça, tocada por essas situações de respeito às pessoas nos seus direitos fundamentais, então isso transparece na minha música porque sou sensível e esse universo me toca. Sendo artista, sinto que tem um lugar de privilégio, de poder usar um microfone e poder me comunicar. Se eu puder falar o que outros não conseguem e representá-los de algum jeito, vira uma responsabilidade para mim. Nesse lugar do feminismo, vivo na própria carne as situações de injustiça. Sou uma mulher imigrante, então vivencio várias violências a partir disso. Sou uma mulher que tomou o caminho de não ter filhos, sou solteira, independente e isso também traz várias situações de violências. São coisas que me atravessam, por isso estão presentes na minha arte. 

GS: Você veio do Chile há mais de dez anos. O que te fez mudar para cá?
CM: Vim do Chile depois de terminar minha faculdade de música. Tirei férias e vim conhecer o Brasil. O que me fez ficar foi a música, a diversidade cultural impressionante. Entendi, já na primeira semana que estava aqui, que existia um mundo incrível neste país e que não daria pra conhecer em dois meses. Já são quase 15 anos e ainda acho que conheço só uns 40% de todo o Brasil. Falta muito. Esse é um país muito rico.

“Tento não ter um olhar extrativista. É muito comum, quando a gente vem de fora, querer tirar alguma coisa muito boa e bonita do lugar e fazer disso algo próprio. Tento não fazer isso, mas sim contribuir de algum jeito.”

GS: Você viveu em Belo Horizonte por 10 anos, estava morando em Salvador e acabou de se mudar para Sao Paulo. Como é a sua relação com as cidades pelas quais passa?
CM: Tento não ter um olhar extrativista. É muito comum, quando a gente vem de fora, querer tirar alguma coisa muito boa e bonita do lugar e fazer disso algo próprio. Tento não fazer isso, mas sim contribuir de algum jeito. Tive uma história grande com Belo Horizonte por ter ficado mais tempo e feito meus projetos na cidade. Me descobri cantautora e compositora lá. Mas tento, de algum jeito, respeitar os lugares por onde passo e contribuir. Tento chegar com todo o respeito, colocar um pouquinho do que sei e aprender também.

GS: Como essa trajetória de fazer arte em cidades diferentes te forma como mulher e como artista?CM: Essa pergunta é muito legal. Ter contato com tantos artistas, geografias, climas, comidas, sotaques diferentes vai me transformando completamente. Me questiono do que é importante ser dito, do que as pessoas precisam, o que eu preciso melhorar em mim. É uma riqueza, sinto que tenho um tesouro dentro de mim de todas as coisas que vi, escutei e vivenciei. É um privilégio. Defendo esse meu lugar de mulher imigrante que pode ir e vir e tem plena liberdade de movimentação. Conhecer as coisas desse jeito me faz pensar em como as realidades são diferentes e como a gente pode construir novos jeitos dentro nós ao vivenciar outras experiências e mundos. Como artista, é muito rico e um privilégio fazer esses passeios, esses encontros com pessoas incríveis, conhecer as histórias dos lugares. Me questiona, me provoca, e borbulha para eu fazer um novo trabalho e novas composições.

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