Comportamento

entrevista com Taciana Fortunati

“A humanidade só existe porque alguém teve um ciclo menstrual, então esse é um assunto sobre todos nós”

Educadora menstrual e criadora do podcast “Eu Menstruo” faz, ao lado da biomédica Carol Pinhol, um olhar sobre como a cidade influencia nos corpos que menstruam. Por Larissa Saram

A diretora de filmes, educadora menstrual e criadora do podcast “Eu Menstruo”, Taciana Fortunati | Divulgação

Aos 13 anos, Taciana Fortunati foi diagnosticada com depressão crônica. Uma vida inteira de terapia depois, descobriu, quase sem querer, que as instabilidades emocionais tinham nada a ver com a doença: “Em 2019, quando fazia estudos sobre ciclo menstrual, ouvi pela primeira vez o termo TDPM, que é o Transtorno Disfórico Pré-Menstrual e fui saber mais. Nunca tive depressão crônica, meu diagnóstico era outro”. 

As pesquisas cada vez mais aprofundadas sobre corpos que menstruam deram para Taciana a noção da falta de conhecimento geral sobre ciclicidade. Ela decidiu, então, conciliar a carreira de diretora de filmes com a de educadora menstrual e criou o “Eu menstruo”, podcast que propõe conversas sobre menstruação e que vão além de fertilidade e sangue. Taci divide os microfones com Carol Pinhol, biomédica e especialista e reprodução, e convidados especialistas nos temas, que vão de neurociência à tributação de anticoncepcionais.

Carol Pinhol, biomédica, especialista em reprodução e co-host do “Eu Menstruo”

Nesse papo duplo, Taci e Carol falam sobre a importância de conhecer o próprio corpo e quais as influências que nossos contextos exercem sobre nossos ciclos.

LARISSA SARAM: Como o tema do podcast alcançou vocês?
TACIANA:
Fui convidada a dirigir um documentário, criado por outras mulheres, sobre feminino. E feminino tem muitas subjetividades, né? Queria entender o recorte e comecei a observar o comportamento delas rolava essa conversa de “que lua que você tá? Ah, eu tô na lua tal”. Fui entender que estavam falando sobre ciclo menstrual e cheguei em um texto de um blog que foi um divisor de águas, transformou a minha  jornada.  Naquele texto, acessei informações que nunca ninguém tinham me contado, sobre como as fases do ciclo influenciam no comportamento. Eu tinha uns 30 e poucos anos, sou uma pessoa curiosa, que estuda, como nunca soube dessa relação? 

CAROL: Já eu sou biomédica, estou mais próxima do ambiente científico. Durante a graduação e a especialização, aprendi sobre ciclo menstrual de uma forma genérica, como se todo mundo fosse igual, sem entender sintomas ou a conexão do ciclo com outras questões do corpo. Estou finalizando um doutorado em que estudo testículos e a produção de espermatozoides e tem muitos dados sobre isso. Fui ver, então, as pesquisas com fêmeas e descobri que tem pouca informação sobre tratamento, diagnósticos, sobre a influência dos hormônios. Foi daí que passei a ter esse interesse. Também sempre quis ensinar sobre educação sexual, então criei a página no Instagram @ser.intime. Por causa disso, fui entrando ainda mais nesse ambiente da menstruação, entendendo os outros pontos que nunca aprendi.

“O nosso ciclo menstrual é um mapa comportamental e
um reflexo da nossa vida, do nosso contexto. Por isso,
o ambiente onde a gente mora tem uma influência direta”.

LS: Por que questionar num podcast a maneira como a sociedade fala da menstruação?
TACIANA:
Porque ciclo menstrual vai além de ovular, de menstruar, de gestar ou não. Trata-se de uma informação fisiológica fundamental para nossa saúde, bem-estar, relacionamentos, trabalho. É quase criminoso que isso tenha sido omitido da gente por tantos anos. Se entendemos que o mundo é populado por uma porcentagem gigante de pessoas que menstruam numa determinada fase da vida, qualquer assunto relacionado é pertinente. A humanidade só existe porque alguém teve um ciclo menstrual, então esse é um assunto sobre todos nós.

LS: Quais impactos o lugar em que moramos e circulamos tem em nossa ciclicidade?
TACIANA:
O nosso ciclo menstrual é um mapa comportamental e um reflexo da nossa vida, do nosso contexto. Por isso, o ambiente onde a gente mora tem uma influência direta. Por exemplo, uma pessoa que mora em São Paulo e que passa muitas horas no trânsito vai ficar mais estressada e elevar os níveis de cortisol. A ovulação responde a tudo isso. É uma integridade, o nosso corpo e a nossa saúde, uma perspectiva integral de tudo que fazemos.

CAROL: Em termos mais técnicos, o Cortisol, que é o hormônio do estresse, inibe FSH e regula Estrogênio, hormônios envolvidos na regulação da ovulação, do muco, dos nossos comportamentos e emoções. Esse desbalanço se traduz em mudanças claras no ciclo menstrual. Por isso é comum que, a qualquer mudança de rotina, o nosso ciclo fique mais longo, mais curto,  ou apareçam sintomas diferentes. 

LS: Como podemos usar o ciclo menstrual no desenvolvimento de projetos, por exemplo?
TACIANA:
Sempre que puder, estude o seu ciclo antes de ir para a ação porque cada fase vai te dar uma perspectiva diferente de projeto. Se você tem um turbilhão de ideias numa fase, que geralmente é a folicular (pré-menstrual), se possível, segure um pouco a onda, vá mapeando ao longo do ciclo como aquilo se comporta dentro de você, porque vai vindo clareza de como levar para a ação na tua próxima fase proliferativa. Acho isso sensacional! 

LS: Quais os benefícios para uma mulher que finalmente consegue olhar para o ciclo e perceber que existe uma influência no comportamento dela?
TACIANA:
Isso atravessa tudo na vida de uma pessoa. Para mim, a palavra que vem mais forte é liberdade. 

CAROL: É a a primeira palavra que vem na minha cabeça também. Liberdade e o respeito com seu próprio corpo, de entender que as oscilações são normais, fisiológicas e que a gente não precisa se comparar com outra pessoa. Está tudo bem se você estiver mais estressada em um momento, se estiver mais produtiva ou menos motivada no outro. É um estágio que é passageiro. 

TACIANA: Quando você observa a ciclicidade em você e tenta se aliar a ela, como uma amiga e não como uma casca, se permite oscilar. Por isso acho que essas informação beneficiam a humanidade como um todo, independente de quem menstrua. Ninguém é feliz o tempo todo, está disposto o tempo todo, produtivo o tempo todo. A gente tem que se acolher e não ficar engolindo o choro, a raiva, passando por cima do próprio cansaço para cumprir determinadas tarefas. Óbvio que dentro do que é possível nesse sistema que vivemos, né!? Poder fazer a minha agenda levando isso em consideração me traz qualidade de vida que nunca tinha tido antes.

“O corpo feminino sempre foi colocado nesse papel de inferior,
com mais defeitos, quando comparado a um corpo masculino.
Isso impediu por anos a evolução de pesquisas científicas”

LS: Por que que vocês acham que durante tanto tempo ficamos  sem saber mais sobre ciclo menstrual e todas as influências dele no corpo?
CAROL:
Isso é baseado no tanto de mito e tabu sobre menstruação que foi criado ao longo da história. Se a gente olhar, há muitos anos, filósofos, escritores, estudiosos da época, diziam que a menstruação era suja, impura. O corpo feminino sempre foi colocado nesse papel de inferior, com mais defeitos, quando comparado a um corpo masculino. Isso impediu por anos a evolução de pesquisas científicas.

LS: E quais os prejuízos reais disso?
CAROL:
Muitos tratamentos foram prejudicados. Existem alguns que só foram estudados no corpo masculino, então, a gente não sabe como determinado remédio ou exame vai agir no corpo feminino. Diagnósticos, como o de TDAH, por exemplo, têm um padrão específico de sintomas que acontecem no corpo masculino, mas que não é bem assim no feminino. Já existiu uma noção de que a pesquisa com mulheres seria mais difícil e mais cara por precisar levar em consideração oscilações hormonais, de comportamento, de plasticidade neural. 

TACIANA: A gente até fez um episódio sobre pesquisa científica e ciclo menstrual. A dificuldade de desenvolver pesquisa científica tem mil razões, os recortes são individuais, um corpo não é igual ao outro, então para ter um grupo de pesquisa, precisa de um filtro de características específicas para poder tirar um resultado daquilo. Tem outra coisa: menstruar é tão tabu que muitas pessoas que menstruam não querem participar dessas pesquisas, não querem ficar falando. E aí vamos remontar a uma época em que não conseguimos chegar à conclusão de onde o tabu começa. A primeira enciclopédia latina é de 73 antes de Cristo e já apontava o sangue como sujo, venenoso. Certamente esse tabu começa muito antes disso. E aí a gente só consegue trabalhar com imaginário pautado em arqueologia. Se você parar para pensar: tem lá uma tribo que, de repente, a mulher sangra todo mês, depois, de repente, ela parece gestando e sai de dentro dela uma criatura viva. Isso é mágico, poderoso. Porque vai saber quando começaram a associar relação sexual à gestação. Por isso acredito, sim, nos arqueólogos que defendem que, no começo da humanidade, quando começou a existir fé e cultos, as entidades eram figuras femininas. Acho que quando começou a ter algum tipo de coordenação humana para se viver em comunidade,  isso foi percebido como um grande poder e passou a ser tolhido. Isso chama patriarcado. 

LS: Como vocês acham que podemos desconstruir uma ideia, que a gente vê com frequência na internet, de que o corpo da mulher não é para menstruar, é só para para reprodução?
CAROL:
Olhando para o próprio corpo como um objeto de estudo, como laboratório. Porque assim você consegue ver na prática todas as alterações. Esse grande movimento de autoconhecimento que tá acontecendo ultimamente precisa incluir também o autoconhecimento do corpo.

TACIANA: Sim! É fazer o seu diário, lembrando que não são só os hormônios que nos influenciam, mas muitas coisas externas. Observar alimentação, a prática de atividade física se tomou algum remédio diferente ou não naquele mês. E questione tudo que acessar sobre o tema, temos estudos inconclusivos, evoluímos pouco até hoje. A gente tá aqui  no “Eu menstruo” estudando, convidando um monte de gente, de várias perspectivas diferentes, independente de serem compatíveis ou não com a nossa, para estabelecer essas conversas.

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