Direitos

entrevista com Preta Ferreira

“Quando a gente fala de moradia digna e de ativismo, fala da cidade, da cultura, do transporte, da saúde, da educação”

A multiartista, ativista e uma das vozes do MSTC faz da arte sua ferramenta de luta por direitos básicos de moradia e de justiça na maior metrópole da América Latina. Por Graziela Salomão

Foto: Divulgação

A história de Preta Ferreira se entrelaça com a de luta por moradia e justiça em São Paulo. A baiana veio para a capital paulistana ainda criança, cinco anos depois de sua mãe chegar à cidade fugindo da violência doméstica, nos anos 1990. E não à toa seu envolvimento com o ativismo de reconhecer o espaço onde mora já estava traçado. Terceira filha de Carmen Silva, líder da Ocupação Nove de Julho e Cofundadora do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), Preta, que nasceu Janice Ferreira Silva e ganhou o apelido do avô, cresceu sob a perspectiva de quem precisa ir à luta para garantir direitos e sobrevivência. 

A trajetória ligada à questão do pertencimento, que começou com a mãe sob o ponto de vista da moradia, com a atuação de Preta se estendeu também à cultura. Na adolescência, sofreu muita discriminacão por ser negra, nordestina e viver em um prédio ocupado. E entendeu que não adiantava bater em quem fazia isso para ser ouvida. Ocupar seu espaço viria de outra forma: através da arte.

Aos 40 anos, Preta quer levar novos significados e o direito de sonhar para outras pessoas. Formada em Publicidade, a multiartista, ativista dos direitos humanos e uma das vozes do MSTC é referência em mostrar que cultura pode transformar a luta e derrubar muitas barreiras entre espaço público e privado. Ela fez isso ao levar, inicialmente, a arte para dentro da Ocupação Nove de Julho. E, depois, em expandir esse alcance para novos horizontes. Em breve, levará para as telas sua própria história e a da mãe em uma série, da qual também é produtora em parceria com o diretor Matias Mariani. “Trazer isso para um público maior de uma forma artística é uma especie de cura”, conta, nessa conversa para o “Mulheres e a Cidade“. A previsão de estreia é para o segundo semestre deste ano.

Curar as marcas e injustiças que a cidade provoca é algo com que Preta tem lidado há muitos anos. Em 2019, ficou presa por 109 dias na Penitenciária Feminina de Santana, zona norte de São Paulo, acusada de extorsão e associação criminosa por supostamente coagir moradores a pagarem taxas nas ocupações na cidade de São Paulo. Ela nega. O processo, baseado em denúncias anônimas e sem provas, ainda segue em tramitação. A experiência dolorosa, as reflexões sobre o sistema prisional e as vivências com outras mulheres na penitenciária se transformaram em memórias no livro “Minha carne: diário de uma prisão”, lançado pela Editora Boitempo. Nessa entrevista, ela mostra como, em toda sua trajetória, a cidade está diretamente ligada a quem ela é hoje. 

Ao lado da mãe, Carmen Silva, no curta “Minha Pele” | Foto: Reprodução

Graziela Salomão: Você é multiartista, ativista dos direitos humanos e da luta por moradia. Como a cidade te atravessa em todas essas suas expressões?
Preta Ferreira: A cidade é uma locomotiva viva. Quando a gente fala de moradia digna e de ativismo por direitos, fala da cidade, da cultura, do lazer, do transporte, da saúde, da educação. Tudo isso com dignidade são direitos básicos pra que a gente viva. 

GS: Sua história e a da sua família são de muita luta por justiça e moradia. Como uma cidade como São Paulo poderia resolver esse problema crucial, que só aumentou nos últimos anos, e que é um direito básico de todo cidadão?
PF: Acho que são muitas camadas, mas tudo começa por política pública de qualidade. É ter menos gente sem teto do que prédios desocupados sem função social. É uma matemática simples, mas quem impede que essa matemática seja feita? Por que o poder público não trabalha com movimentos sociais sérios que lutam e que já fazem o que é garantido na constituição? É algo a se pensar como sociedade. 

“A arte me ressignificou e eu quero e desejo que também ressignifique a vida de quem não sabe o que é o direito de sonhar e de viver em sua plenitude”

GS: De que forma a sua arte é um legado da sua história e da mensagem que você quer deixar para todos?
PF: Eu venho de Salvador. Minha expectativa era apenas a sobrevivência. A arte me ressignificou e eu quero e desejo que também ressignifique a vida de quem não sabe o que é o direito de sonhar e de viver em sua plenitude. 

GS: Você ficou presa por 109 dias em 2019. Como conseguiu lidar com esse cerceamento da liberdade? E o quanto isso te transformou?
PF: A injustiça é para todas as pessoas pretas. Vem da necropolitica, da máquina de matar e de nos prender. Quando eu estava presa, me disseram que aqui fora estavam fazendo uma campanha chamada “Preta Livre”. Pedi pra que fizessem uma mudança e colocassem “Pretas Livres” porque sei que não sou só eu que vivi isso. Essa foi a transformação: sentir na pele pelo que sempre lutei. 

GS: Você disse que escrever um livro de memórias dessa experiência foi um grito de liberdade. Como foi transformar todas essas lembranças em palavras?
PF: Foi a forma que entendi, lá dentro, que me manteria sã e forte. Ao mesmo tempo, era o jeito de guardar as memórias de tantas que conheci, de muitas coisas que senti. É um documento e a realidade de muitas de nós. 

GS: Qual foi a sensação de andar pela cidade logo depois de ter reconquistado sua liberdade?
PF: Foi um pouco traumatizante. E logo depois entrou a pandemia. A vida muitas vezes nos faz enfrentar questões que muita gente sequer entende a força que precisamos ter. 

“Quando eu estava presa, me disseram que aqui fora estavam fazendo uma campanha chamada “Preta Livre”. Pedi pra que fizessem uma mudança e colocassem “Pretas Livres” porque sei que não sou só eu que vivi isso. Essa foi a transformação: sentir na pele pelo que sempre lutei”

GS: Ao longo do tempo, quais foram os significados da cidade para você e o que ela significa hoje?
PF: Cidade é vida. É arte. É dignidade. Estou muito focada agora na minha arte.

A ativista estadunidense Angela Davis visitou Preta Ferreira logo depois que ela foi solta, em outubro de 2019 | Foto: Reprodução / Instagram

GS: A sua história e a da sua mãe serão tema de uma série e você é produtora do filme também. Como é revisitar a história de vocês nesse projeto?
PF: Está sendo incrível. Ser produtora com pessoas maravilhosas que tenho como colegas de trabalho e trazer isso para um público maior de uma forma artística é uma especie de cura. 

GS: Qual é a cidade que você sonha e pela qual você luta?
PF: Luto por uma cidade com liberdade e direitos para todas as pessoas.

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