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entrevista com Ester Carro

“Quando a gente fala de habitação, a prioridade precisa ser das mulheres”

Arquiteta social detalha sua trajetória desde o nascimento do projeto de revitalização de um lixão até as reformas de moradias precárias no Jardim Colombo. Por Larissa Saram

A arquiteta social e presidente do Instituto Fazendinhando, Ester Carro | Foto: Divulgação

Assim que entra na sala virtual onde vamos conversar para esta entrevista do Mulheres e a CidadeEster Carro pede desculpas: “Queria ter te respondido antes, mas são muitas demandas”. Ela estava falando dos pedidos de entrevistas e gravações de vídeos e podcasts, mas a agenda da arquiteta social há ainda uma lista de responsabilidades que incluem um doutorado em andamento, as aulas que dá na universidade, os cuidados com o filho e projetos para melhorar a vida das cerca de 15 mil pessoas que moram hoje no Jardim Colombo, na zona sul de São Paulo. A comunidade faz parte do complexo de Paraisópolis, segunda maior favela da cidade, e foi lá que Ester criou o Instituto Fazendinhando, uma organização que promove o desenvolvimento do território a partir de ações culturais, socioambientais e capacitações de moradores e lideranças.

A comunidade faz parte do complexo de Paraisópolis, segunda maior favela da cidade, e foi lá que Ester criou o Instituto Fazendinhando, uma organização que promove desenvolvimento do território a partir de ações culturais, socioambientais e capacitações de moradores. Isso significa que Ester e seu time reformam moradias precárias, organizam eventos de lazer, praticam a economia circular, reaproveitam materiais e preparam moradores, principalmente mulheres, para que elas possam promover transformações em casa e ao redor.

O nome do Instituto vem de Fazendinha, apelido dado a um terreno onde, no passado, eram criados animais, e que acabou virando um aterro. É que em 2017, já formada como arquiteta e envolvida com a questão social, Ester começou a colocar em prática o sonho de transformar aquele lugar cheio de lixo em um parque. Com a ajuda de voluntários e alguns apoios, conseguiu limpar quase tudo. O projeto ainda não está finalizado, mas hoje o espaço é ocupado com atividades culturais e festas para a comunidade.

A seguir, Ester detalha os caminhos que a levaram até a arquitetura social, como são realizados os trabalhos pelo Instituto Fazendinhando e qual é o significado de poder transformar a vida de pessoas que quase sempre são esquecidas pelo poder público.

Ester Carro na Fazendinha, já sem lixo e entulho | Foto: Divulgação

Larissa Saram: De onde nasceu o sonho de ser arquiteta?
Ester Carro: 
Meu pai é líder comunitário e a minha mãe também é engajada com a questão social. Por conta deles, sempre estive envolvida com projetos sociais, principalmente durante a infância. Até por isso, de alguma maneira, eu queria que a profissão que eu fosse exercer devolvesse isso para o território. A princípio queria ser professora, não fazia a mínima ideia do que era ser arquiteta, ainda mais nesse lado social. Um dia, voltando da escola, uma amiga que também morava no Jardim Colombo, me perguntou “Por que você não faz arquitetura?”. E eu: “Nossa, mas o que tem a ver comigo?”. Fui pesquisar. Também falei com a minha mãe e com a minha vó, que era empregada doméstica e começou a trazer das casas onde trabalhava revistas de design, de decoração. Eu ficava olhando, admirando, desenhando as coisas que via. Começou a surgir ali uma paixão. Quando fiz 16 anos de idade, ganhei uma bolsa num colégio particular e lá tive que realizar um trabalho final, de conclusão do Ensino Médio, sobre a profissão que queria exercer. Foi uma baita oportunidade porque ali eu pude pesquisar mais sobre a arquitetura e comecei a entender melhor. Também tive que fazer um rápido estágio em Paraisópolis e lá tive total certeza do que queria, foi lá que entendi o poder da arquitetura e do urbanismo nas favelas.

LS: E qual poder era esse?
EC: Pude observar as técnicas da arquitetura e do urbanismo sendo aplicadas no território, visualizei conjuntos habitacionais, construção de áreas verdes, de parques, de espaços coletivos, a revitalização de áreas degradadas. Pude ver na prática, ali nos meus 16 anos de idade, exatamente esse poder mesmo, o impacto dessas ferramentas sendo aplicadas dentro do território.

“Eu conheço pouquíssimos
projetos que têm essa força
coletiva. Quando a gente fala
da Fazendinha é como se a
gente estivesse falando de
muitas e muitas mãos”

LS: O Instituto Fazendinhando nasceu do projeto de transformação da Fazendinha, que era um aterro e hoje é um espaço revitalizado no Jardim Colombo. Como foi que esse projeto de transformação começou?
EC:
Eu já estava engajada com os projetos voltados para a arquitetura social. Então, em 2017, fiz junto com outras pessoas a reforma de uma moradia, que era a casa da Dona Maria. Fiquei impressionada. A família que se beneficia da reforma tem todo um impacto, claro, mas pra gente que tá ali, toda a mobilização, ter acompanhado tudo, cada etapa do processo, é muito forte. Pensei: “Poxa, é isso mesmo, é com isso que eu quero trabalhar”. Meu pai, por ser líder comunitário, tinha uma rede de contatos e começou a falar que eu queria atuar com arquitetura social. Naquela época, surgiram alguns voluntários que também tinham esse desejo de transformar o território e vieram conhecer o Jardim Colombo. A gente se uniu para poder fazer na Fazendinha o que já havia acontecido na favela do Vidigal, no Rio de Janeiro, no Sitiê, que era um lixão e foi transformado em um parque. No Jardim Colombo, o lixão estava prejudicando a comunidade. Tinha rato, barata, escorpião, até filhote de cobra foi encontrado ali. O Paulinho, que é mestre de obra da Fazendinha, chegou a encontrar a cabeça de um morador. Isso acontece porque esses espaços não recebem manutenção correta, que não têm uma zeladoria, acabam sendo espaços do crime. E a Fazendinha era isso, representava isso. Aí começamos esse processo de mobilização comunitária para transformar o espaço, para que os moradores entendessem que haveria um projeto, que seria necessário a participação deles e que eles deveriam parar de jogar lixo lá. Começamos os primeiros mutirões em dezembro de 2017 e ficamos até o final de janeiro de 2018. Nesses primeiros mutirões foram mais de 40 caminhões de lixo retirados. Hoje já foram mais de 200. O projeto não está finalizado, mas agora faz parte do plano de urbanização do Jardim Colombo. Só que a gente sabe que é um processo demorado, então nós vamos realizando intervenções, atividades, até para que não fique um espaço abandonado. No ano passado, por exemplo, nós tivemos um festival com a presença de 700 moradores. Eu conheço pouquíssimos projetos que têm essa força coletiva. Quando a gente fala da Fazendinha é como se a gente estivesse falando de muitas e muitas e muitas mãos.

LS: Como conseguiram engajar a comunidade nessa transformação coletiva?
EC: Olhar para os territórios e ver essas necessidades, entender as demandas, mapeá-las e, a partir disso, co-criar soluções com a comunidade é extremamente necessário. Não é só colocar uma placa dizendo “proibido jogar o lixo”. Foi levando cultura que a gente conseguiu mobilizar as pessoas. É mobilizar a partir dos sonhos, dos desejos, daquilo que os moradores gostam de fazer. Não é só trazer também a parte técnica, com um projeto pronto de paisagismo, de arquitetura, mas entender o que os moradores querem e colocar isso no projeto. Pesquisar, escutar, ver os desenhos das crianças com o que elas desejavam para o espaço. Tem essa beleza, assim, desse processo participativo, e é muito forte.

“A gente busca levar
esse conhecimento
técnico, que é tão distante,
para dentro da comunidade
de uma maneira acessível,
lúdica, criativa. De uma forma
que respeite também, porque
acho que a gente tá sempre
construindo de forma coletiva
aqui. Óbvio que a gente tem
um pouco mais de conhecimento,
mas não negamos os saberes locais”


LS: Além de trabalhar nas melhorias da Fazendinha, quais outros trabalhos vocês realizam no Instituto Fazendinhando?
EC: A gente tem o projeto Fazendolar, que é a parte de reforma em moradias precárias. Ele acontece de duas maneiras: temos mutirões e também as reformas em moradias completas. Essas acabam demorando um pouquinho mais porque os custos são mais altos e a gente depende do que temos ali no momento. Trabalhamos com a economia circular, que é o reaproveitamento de materiais. A gente utiliza revestimentos, sobras de tinta, esquadrias, objetos de decoração, pia, enfim, a gente consegue fazer o reaproveitamento de vários itens e utilizar na obra e diminuir os custos. E nós temos também o projeto das Fazendeiras, que capacita as mulheres na área da gastronomia, do artesanato e principalmente na área da construção civil. Conseguimos ampliar o número de reformas por conta dessas capacitações. A parte prática acaba acontecendo na casa delas mesmo. No caso da Lê, que é uma das nossas Fazendeiras, por exemplo, a capacitação de elétrica aconteceu na casa dela, estava tudo precário, ela praticamente não tinha banheiro e não conseguia tomar banho na própria casa – tudo isso com duas crianças pequenas. Elas tinham que tomar banho na casa da ex-sogra ou esquentar água no fogão. Ela foi uma das Fazendeiras que mais aderiu à capacitação, tanto que hoje, quando aparecem pequenos reparos de elétrica em outras casas, a gente chama ela pra fazer. Ah, nós entregamos o banheiro completo para ela. Quando terminou, ela contou que o banheiro era o lugar onde o filho mais novo mais gostava de ficar. O Fazendinhando trabalha com essa transformação territorial, cultural e socioambiental, por meio desses três pilares, e a gente não atua só no Jardim Colombo, nós atuamos também em outras favelas, de forma pontual, quando temos recursos ou fazemos alguma parceria. E tem mais um trabalho que a gente realiza muito, que é de conscientizar outras lideranças.

As Fazendeiras, mulheres do Jardim Colombo que recebem capacitação do Instituto Fazendinhando para reformar moradias precárias na comunidade


LS:  Qual é o maior propósito do Fazendinhando hoje?
EC: Acho que a gente vive numa sociedade muito autoritária, onde as mulheres não participavam das tomadas de decisões ou participavam dos espaços públicos. Ou mesmo quem vivia nas favelas era e ainda é marginalizado. E aí a gente vem com Fazendinhando e mostra para a população, pra comunidade, que assim “olha, vocês podem fazer também”. Quando o conhecimento técnico chega no local, olha o impacto que causa a transformação. Então a gente busca levar esse conhecimento técnico, que é tão distante, para dentro da comunidade, de uma maneira acessível, lúdica, criativa. De uma forma que respeite também, porque acho que a gente tá sempre construindo de forma coletiva aqui. Óbvio que a gente tem um pouco de mais conhecimento, mas não negamos os saberes locais.

LS: O que as pessoas não sabem sobre a arquitetura social?
EC: 
A primeira coisa é que elas não conhecem a Lei de ATHIS, que é a lei de assistência técnica de habitação de interesse social. Isso significa que pessoas com até três salários mínimos têm o direito a um profissional de arquitetura pra realização de um projeto. É uma lei muito bem estabelecida, só que, de fato, não acontece, né? Acho que existem leis bem desenvolvidas, mas que quando é para o desenvolvimento das políticas públicas, não são aplicadas. Acho que as pessoas, nesse lado da arquitetura social, não sabem que têm o direito sim a um profissional ou mesmo falando de pessoas ainda mais humildes, que estão em extrema vulnerabilidade social, que elas têm direito a uma moradia digna. Isso está na Constituição Federal. Acho que na arquitetura social, elas desconhecem também que existem diferentes coletivos, espalhados pelo Brasil, que atuam nessa área, que prestam algum serviço com um valor muito mais acessível. Tem se falado bastante agora, mas ainda assim não é algo que está ao alcance das pessoas. Acho que quando a gente fala na questão da Constituição Civil é caro, né? Pagar a mão de obra, materiais.

LS:  Dados do IBGE apontam que 60% do Déficit Habitacional do país é composto por mulheres aqui no Brasil. Por que você acha que isso acontece?
EC: Em 2020, nós fizemos uma pesquisa durante a pandemia e conseguimos falar com 800 moradores do Jardim Colombo. A maioria era mulher, chefe de família. Houve um crescimento muito grande de mulheres que são mães solo, ou até mesmo quando tem um companheiro, é ela que mantém a casa. Tem muitas situações em que, com o crescimento das famílias, elas acabam dividindo a moradia e são as mulheres que precisam manter esses espaços. Nessa pesquisa que fizemos, constava que ao mesmo tempo que tinha uma quantidade muito grande de mulheres sendo chefes de família, tinha também um número muito grande de mulheres vivendo em aluguel. Ou seja, principalmente dentro das favelas é muito perceptível isso, que quando a gente fala de quem está em moradias precárias, a maioria são mulheres. Os que vivem em casas alugadas, a maioria são chefiados por mulheres. Acho que a tendência é crescer cada vez mais, e por isso tem essa urgência de políticas públicas habitacionais para mulheres. Tem também uma coisa que acontece, por exemplo, das políticas habitacionais, que quando tem o “Minha Casa, Minha Vida” e outros desse programas, a maior parte da titularidade da moradia é do homem. Então, quando acontece uma separação, por exemplo, quem fica com a propriedade da moradia é ele. Não olhar pras cidades a partir do gênero, acaba gerando essa realidade. Quando a gente fala numa questão da moradia, na entrega de um apartamento, de uma casa nova, a titular tinha que ser a mulher. Até porque, muitos desses casos, são famílias que têm crianças e no final, a gente sabe, quem cuida, quem fica com as crianças são as mulheres. Hoje até temos mais homens cuidando, mas ainda assim a maioria é mulher. Há políticas públicas, criação de projetos, de intervenções, de ações que não condizem com a necessidade da brasileira, a nível nacional. Então quando a gente fala de habitação, a prioridade precisa ser das mulheres.

“Não dá mais para
falar hoje sobre a questão
da habitação e não pensar
nas moradias precárias.
Hoje, no Brasil, elas são
mais de 40 milhões.
Quando a gente fala
em moradias precárias,
estamos falando de
mulheres, idosos,
crianças que não têm,
muitas vezes, um banheiro,
que estão em casas insalubres”

LS: Como você acha que a falta de moradia poderia ser melhorada numa cidade como São Paulo?
EC: 
Não dá para falar hoje mais sobre a questão da habitação e não pensar nas moradias precárias. Hoje, no Brasil, elas são mais de 40 milhões. Quando a gente fala em moradias precárias, estamos falando de mulheres, idosos, crianças que não têm, muitas vezes, um banheiro, que estão em casas insalubres. Esses dias fui visitar uma casa e fiquei aterrorizada. Moravam lá uma mãe solo e os dois filhos, o mais novinho estava com uma alergia fortíssima porque a casa estava lotada de mofo. E não era falta de limpeza, é porque era mofo demais. Então acho que o primeiro ponto na questão da habitação são as melhorias porque vai causar um impacto grande não só na questão da moradia, mas também na saúde, na segurança. O segundo ponto é um mapeamento das áreas de ZEIS, que são Zonas Especiais de Interesse Social, porque o poder público consegue prever nesses lugares novas unidades habitacionais. Entendendo o mapeamento desses territórios, de que forma essas construções e novas unidades habitacionais podem ser feitas com uma maior frequência? Parece meio óbvio, mas não é tanto assim, porque estamos perdendo muitos desses espaços para o mercado imobiliário. Muitas áreas que poderiam ser terrenos para unidades habitacionais estão virando condomínios e outras construções por falta de fiscalização. Feitos os mapeamentos, é preciso ter projetos a curto e médio prazo, porque quando a gente fala em unidades habitacionais elas geralmente estão acompanhadas das obras de urbanização, que levam muito tempo para ficarem prontas e geralmente param quando tem troca de gestão. Então é importante que essas unidades habitacionais sejam um pouco menos vinculadas com a questão do saneamento básico e que sejam providas de uma forma mais rápida. Existem também os cortiços e prédios nas áreas centrais. A gente tem um mapeamento de prédios em São Paulo e a nível nacional desses imóveis que estão abandonados, que são bem localizados, que já possuem uma infraestrutura urbana básica e poderiam ter pessoas morando. Sei que existe o programa Minha Casa, Minha Vida, mas é necessário fomentar novas políticas de acesso à moradia, com preços mais acessíveis, sabe?

A Fazendinha, em uma das ações culturais promovidas pelo Instituto Fazendinhando

LS:  O que o Jardim Colombo simboliza pra você?
EC: Eu gosto muito da palavra “comunidade” porque é isso que o Jardim Colombo representa para mim. Não só pela minha família que está lá, hoje moro no finzinho da Paraisópolis, mas de forma geral, existe um acolhimento lá. Cresci vendo os moradores se apoiando, ajudando uns aos outros, esse senso de colaboratividade, de criar soluções para as necessidades com pouco. E também resiliência. Muitos moradores, para conquistarem seus sonhos, seus trabalhos, seus objetivos, tiveram que se reinventar, tiveram que passar por muitas situações complexas. É uma comunidade muito resiliente, que tem essa força de se adaptar na crise e de se unir. Óbvio que tem os seus conflitos, mas pra mim lá é um lugar de paz. E é difícil a gente relacionar uma favela com a palavra paz, né? Mas isso vem das pessoas, me sinto segura quando estou lá.

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