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entrevista com Natalie Unterstell

“Não temos como evitar as catástrofes. As chuvas virão mais fortes. A gente precisa que se faça o máximo antes de eventos como esse chegarem”

Presidente do Instituto Talanoa, dedicado às políticas de mudanças do clima no Brasil, explica como tragédias como as que aconteceram no Rio Grande do Sul podem se repetir cada vez mais. Por Graziela Salomão

Foto: Tatiele Pires/Instituto Talanoa

Mais de 100 pessoas mortas, cidades inteiras embaixo d’água e famílias migrando para outros lugares. O cenário de catástrofe não é de nenhuma série distópica, mas a realidade que assolou várias cidades do Rio Grande do Sul desde o último dia 2 de maio. Cenas de casas submersas, pessoas sendo resgatadas de barco em Porto Alegre, capital do Estado, animais de estimação ilhados em cima de telhados são resultado de chuvas fortes e sem precedentes na região.

No entanto, a culpa não é da natureza ou do clima, mas sim resultado da intensificação das mudanças climáticas globais, da falta de políticas públicas que se antecipem a esses desastres, que devem ser cada vez mais frequentes, e da conscientização através de leis de proteção ambiental. “É muito importante que se entenda que, com essa frequência em maior intensidade, é preciso se preparar melhor. E não se pode confundir isso com normalizar. É o contrário, temos que nos preparar até porque os riscos estão se mostrando mais altos do que nós, que trabalhamos no assunto, imaginávamos que aconteceria agora. Pensávamos que alguns desses efeitos poderiam ficar mais fortes só depois”, afirma Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, dedicado às políticas de mudanças do clima no Brasil.

Única brasileira a participar do programa Homeward Bound, que promove a participação das mulheres na ciência e na política com o objetivo de aumentar a influência e o impacto delas nas decisões para o futuro do planeta, Natalie passou seis anos trabalhando com comunidades indígenas no Amazonas. Além disso, foi a primeira brasileira representando uma liderança ambiental a ganhar uma bolsa na Universidade de Harvard para fazer mestrado em administração de políticas públicas, e diretora de desenvolvimento sustentável da Presidência da República.

Nesta conversa para o “Mulheres e a Cidade“, a especialista paranaense alerta que os eventos extremos serão mais constantes. Por isso, ações macro, como a descarbonizacão da economia global, que é fazer uma transição energética de combustíveis fósseis para energia mais limpa, e micro, que dependem de cada um de nós, como manter a cidade limpa e a consciência da importância do voto, são determinantes para que tenhamos um futuro diante desse novo cenário. E a tudo isso deve se somar, ainda, o protagonismo das mulheres em ações pós desastres e novas estruturas para as cidades pensadas para a atual realidade climática que vivemos.

A cidade de Porto Alegre após as chuvas fortes da última semana | Gustavo Garbino/PMPA

Graziela Salomão: O que tem acontecido ultimamente deixou de ser exceção e tem sido uma nova realidade. Como governos e políticas públicas poderiam prever e evitar catástrofes como essa?
Natalie Unterstell:
O que temos visto não é mais uma uma exceção. Não é um episódio, mas sim uma série de eventos que estão cada vez mais extremos. É muito importante que se entenda que, com essa frequência em maior intensidade, tem que se preparar melhor. E não se pode confundir isso com normalizar. É o contrário, temos que nos preparar porque os riscos estão se mostrando mais altos do que nós, que trabalhamos no assunto, imaginávamos que aconteceria agora. Pensávamos que alguns desses efeitos poderiam ficar mais fortes só depois. Não temos como evitar as catástrofes. As chuvas virão mais fortes. A gente precisa pensar na adaptação, na proteção que é garantir que se faça o máximo antes de eventos como esse chegarem. E, claro, que organizemos as comunidades, as cidades, as próprias famílias para terem condições de enfrentar situações como essas que são muito difíceis. 

“Deixar de fazer a transição energética rapidamente é uma forma de alimentar esse tipo de evento extremo que leva a desastres”


GS: Muitos dados mostram a necessidade da descarbonização da economia global até 2050. Você falou também sobre a questão dos combustíveis fósseis e como o Rio Grande do Sul, tão afetado por essa catástrofe climática, poderia ser um primeiro exemplo de transição energética ao se livrar do carvão mineral. Essa seria uma forma de lidar e evitar novas tragédias?
NU: A descarbonização da economia já deveria estar acontecendo. E os cenários indicam que, no máximo até 2050, é preciso zerar as emissões globais. Isso significa descarbonizar, ou seja, deixar de emitir gás carbônico e demais gases de efeito estufa em todos os lugares do mundo, principalmente nos lugares em que a emissão era maior antes, em geral, os países desenvolvidos. 
O Brasil é o quinto maior emissor histórico. No caso do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, uma das principais fontes de emissões são as térmicas de geração de energia com o carvão mineral. São estados que hoje têm reservas que ainda poderiam ser exploradas, mas que não fazem sentido algum porque é uma energia cara, suja e obsoleta. Ainda assim, há várias tentativas políticas. Santa Catarina conseguiu prolongar subsídios que eram para ser encerrados agora em 2027 e foram postergardos até 2040. Há um lobby no Rio Grande do Sul para conseguir o mesmo tipo de benefício. Deixar de fazer a transição energética rapidamente é uma forma de alimentar esse tipo de evento extremo que leva a desastres.

Natalie Unterstell na expedição à Antártida | Arquivo pessoal

GS: Se nada for feito, é possível que tenhamos eventos cada vez mais catastróficos nas cidades brasileiras?
NU: Com certeza. Se nada for feito em relação às emissões globais, não só aqui no Brasil, mas no restante do mundo, é altamente provável que a gente tenha cada vez mais eventos extremos. No Brasil, temos diferentes cenários mostrando os níveis de risco, quais tipos de eventos podem se exacerbar, sejam enchentes ou estiagens. É gravíssimo e é claro que devemos lidar com muita responsabilidade com tudo isso.

GS: Na sua opinião, de quem é a culpa/responsabilidade por toda essa tragédia que temos visto mais frequentemente nos estados brasileiros?
NU: Certamente a culpa pelos desastres não é da natureza, do clima ou da chuva. Tem uma responsabilidade humana ligada há dois aspectos. O primeiro, no macro, que é a fonte das emissões, no caso principalmente a indústria dos combustíveis fósseis –  petróleo, gás e carvão – que está ainda alimentando esses extremos e que precisa fazer uma transição imediata. Ela precisa se transformar rapidamente, senão continuaremos com desastres que estão se tornando mais prováveis e intensos por conta da mudança do clima. O segundo aspecto de responsabilidade é sobre os riscos que somos nós que gerenciamos. E aqui entra uma coisa superimportante: a gente já tem um cenário, sabe que isso vai acontecer, então é preciso se preparar. E se não se tem esse preparo, existe uma culpa. Não se pode simplesmente não fazer nada e esperar pela próxima calamidade. Quando ouço relatos, em particular agora do caso do Rio Grande do Sul, mas que já aconteceram em situações anteriores no Rio de Janeiro e outros lugares, que apontam que os bueiros estão entupidos, a drenagem era muito ruim na cidade, as bombas, os diques, e a infraestrutura que estava ali para proteger as pessoas não funcionou porque estava obsoleta ou não tinha manutenção, tudo isso é irresponsável. E tem uma culpa aí por não ter se dado a devida atenção a esse risco. Agora a conta está sendo cobrada e da pior forma possível.

“Muitas das boas ideias que são colocadas em prática em situações de reconstrução vêm de organizações lideradas por mulheres. Ter isso em mente faz uma diferença enorme
para ver na prática essa mudança”

GS: Como podemos pensar, vendo todos esses colapsos climáticos nas cidades, em causas e soluções para isso que atravessem também o papel das mulheres nas cidades?
NU: As mulheres mundo afora costumam receber um impacto muito grande da mudança do clima. Dados mostram que, nesses desastres, o pós é particularmente difícil para elas. Um estudo de 2010, por exemplo, mostrou que depois do furacão Katrina, nos Estados Unidos, a violência física contra mulheres aumentou 98%. Tinha relação tanto com aumento da violência em casa como exploração sexual. Tem um impacto negativo muito forte, mas também é interessante notar como as mulheres podem assumir um protagonismo na solução, como políticas direcionadas a elas de microcrédito, de proteção contra essas violências. Criar um ambiente seguro para as mulheres poderem empreender, acessar a educação, e realmente prosperarem é muito importante. Muitas das boas ideias que são colocadas em prática em situações de reconstrução vêm de organizações lideradas por mulheres. Ter isso em mente faz uma diferença enorme para ver na prática essa mudança.

O resgate de moradores feito por botes nas ruas alagadas de Porto Alegre | Alex Rocha/PMPA

GS: Você disse que ainda dependemos de casas, políticas, infraestrutura pensada para um clima que não existe mais e que as cidades brasileiras continuam sendo construídas sem pensar nisso. Como seria essa estrutura das cidades para lidar com a nova realidade climática?
NU: Acho que o exemplo de Porto Alegre nos mostra que a cidade foi reinventada a partir de uma grande enchente em 1941 e a estrutura criada para regular as águas do Rio Guaíba foi pensada com aquele momento na cabeça. E por não se ver um risco alto de uma grande chuva extrema como essa acontecer, ela não estava sendo adequadamente mantida. Quando eu falo que as cidades foram feitas para um clima que não existe mais é nesse sentido. O que se faz de investimentos em novas infraestruturas não é resiliente, não está voltado para o risco climático que se tem agora ou no futuro. Para poder migrar, precisamos construir novas estruturas considerando esse cenário que já está acontecendo em vários lugares do mundo. Em um país pobre, como Moçambique, que é um dos menos desenvolvidos do mundo, quando uma pessoa vai construir uma casa em cidades costeiras, ela vai à prefeitura, fala que a casa será em um determinado endereço, eles vão colocar no mapa e mostram para as pessoas quais são os riscos a que essa casa está sujeita. Eles já colocaram ali os cenários climáticos. A pessoa sai da prefeitura sabendo que está em uma área que pode ter inundação, que precisa fazer uma casa elevada. Ela ganha instruções de como se adaptar. Isso é muito importante. Parece meio óbvio, mas Infelizmente não temos isso ainda aqui no Brasil. Outro exemplo: nos Estados Unidos, cidades como as da Filadélfia, afetadas por chuvas intensas, montaram estratégias de permeabilização, tirando asfalto, criando áreas verdes, caminhos pra água escoar com maior velocidade. Teve todo um investimento que a gente chama de infraestrutura ou soluções baseadas na natureza. Envolveram os cidadãos nisso e hoje se tem uma cidade mais agradável e verde. Isso custou muito mais barato do que fazer um piscinão, por exemplo. Cada cidade vai ter uma cara e escolher o que fazer. O importante é que a gente lembre que é pensando no futuro, e não olhando para trás, que essas novas estruturas devem se constituir.

“O importante é que a gente lembre que é pensando no futuro, e não olhando para trás, que essas novas estruturas
devem se constituir”

GS: O que podemos fazer para garantir um futuro para nossas cidades com essa nova realidade climática? E como você tem visto especificamente o papel das mulheres nessa atuação?
NU: Na realidade, os impactos da mudança do clima atingem mais as mulheres no global. Os dados que nós temos para o Brasil mostram que, em relação a eventos extremos, temos mais homens negros e pardos como afetados. A mudança do clima é violenta, coloca as mulheres em situações de muita vulnerabilidade, costuma exacerbar as desigualdades pré-existentes que conhecemos e que têm a ver com o papel da mulher na sociedade. Acho que a gente precisa pensar, por outro lado, que começamos a ver os refugiados climáticos, que são essas pessoas forçadas a sair das suas casas, de suas cidades por conta de impactos da mudança do clima e o que acontece quando essa mulher tem que se mover com criança e famílias. Qual fardo ela tem que carregar e como isso faz que o impacto seja tão negativo também.

GS: Como cada pessoa, em sua rotina, pode contribuir para que catástrofes como essas deixem de acontecer?
NU: Ainda que evitar catástrofes como essa dependam fundamentalmente de ações sistêmicas, de fazer a transição energética, as pessoas têm papéis. Desde não deixar bueiros entupirem e não jogar lixo na rua, que é uma questão forte porque quando tem uma grande chuva, o bueiro limpo é a garantia de se ter a drenagem funcionando. Tem todo um outro lado também de conservação da água, de uso eficiente dos recursos, de migrar para modelos de transporte mais ativos – caminhar, pedalar, na medida do que for seguro e possível usar o transporte público. Pensar em outras formas de reduzir a sua pegada de carbono. Uma pessoa sozinha fazendo isso não vai resolver o problema, mas se muitas fizerem gera um efeito dominó superimportante que sinaliza pras empresas e marcas que as pessoas não estão dispostas a comprar coisas que poluem ou desmatam. Isso é crítico e claro. Tem decisões políticas também. O voto é fundamental. Temos agora eleições municipais e o voto hoje também é crítico. Ainda temos, infelizmente, muitas propostas legislativas e planos de governo alheios a tudo isso, ou até que vão no sentido contrário ao que a gente precisa. Por isso, o voto, a cobrança e o monitoramento da resposta política é importante.

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