Direitos

entrevista com Colombe Brossel

“Esta é a oportunidade para as pessoas terem uma conexão direta com o Sena como era até o início do século XX”

Senadora francesa e uma das engenheiras responsáveis pela obra de limpeza do rio Sena fala sobre a importância dessa ação para Paris e para a vida da população na cidade. Por Graziela Salomão

A senadora francesa e uma das engenheiras responsáveis pela obra de despoluição do rio Sena | Foto: Divulgação

Todos os olhos se voltam para Paris nessa semana. Além da torcida pelos atletas brasileiros, com certeza a abertura, primeira a ser realizada a céu aberto nas águas de um rio, dominou alguma de suas rodas de conversa e o tema “despoluição do Sena” foi destaque. A ousadia de fazer um evento como esse em um rio que, desde 1923, estava impróprio para o banho, dividiu opiniões. A prefeita parisiense Anne Hidalgo chegou a dar um mergulho no Sena semanas antes dos jogos para provar que as águas estavam limpas. No entanto, houve um sucessivo adiamento de provas, como o triatlon e a maratona aquática, por considerarem as condições das águas inseguras para os atletas.

Um dos motivos, segundo as autoridades de Paris, seriam as fortes chuvas da última semana. O compromisso com a limpeza do rio aconteceu em 2015. Ao todo, a prefeitura investiu 1,4 bilhões de euros. Entre as ações realizadas, um reservatório que pode conter o volume de até 20 piscinas olímpicas para capturar o excesso de água de chuva e evitar que as águas residuais seguissem para o rio, a renovação da infraestrutura de esgoto e a modernização de tratamento das águas residuais. O adiamento das provas mostra que ainda há ajustes a serem realizados para que o rio seja totalmente seguro, mas a ousadia e o vanguardismo de políticas públicas, aliados também ao interesse da população, surtem efeitos. “Esperamos que outras cidades possam aprender com nossa própria experiência com o Sena para seguir políticas semelhantes em seus espaços”, afirma a francesa Colombe Brossel, uma das engenheiras responsáveis pela obra de despoluição do rio, em entrevista ao Mulheres e a Cidade desta semana.

Senadora desde 2023, Colombe também faz parte da delegação do Senado francês para os Direitos da Mulher e Igualdade de Oportunidades e acredita que “através da educação, do ativismo, da defesa de políticas de apoio e de redes fortes”, as mulheres podem contribuir de maneira ainda mais efetiva para a cidade onde vivem. “O importante para nós, como líderes políticas em todos os níveis, é dar o exemplo e implementar políticas específicas para apoiar as mulheres”. Assim como a maioria das mulheres francesas, Colombe é uma flâneuse nata e usa o caminhar como seu principal meio de transporte. “Ir a lugares a pé pode ser a maneira mais fácil de se locomover de um ponto a outro em Paris e é a mais agradável”, conta. 

A senadora francesa Colombe Brossel | Foto: Reprodução/Facebook

Graziela Salomão: Paris conseguiu despoluir o Rio Sena para as Olimpíadas. Como isso será importante para uma maior integração da cidade com a população depois que os jogos acabarem?
Colombe Brossel: Com os Jogos Olímpicos de 2024, a cidade de Paris tem trabalhado muito duro e pressionado todos os atores responsáveis ​​pela despoluição do Sena para garantir que ele esteja pronto para este verão. O Sena está no coração das Olimpíadas, tanto na cerimônia de abertura quanto nos diferentes eventos de natação em águas abertas. A limpeza do Sena deve ser um dos legados mais significativos. Além dos atletas poderem competir no Sena, a cidade de Paris tem sido muito clara sobre o projeto que vem realizando desde o primeiro dia: a possibilidade de os próprios parisienses nadarem em três diferentes pontos de banho públicos. E a possibilidade de muitas pessoas nadarem em 20 pontos de banho nos rios Sena e Marne no próximo verão. Portanto, esta é a oportunidade para as pessoas terem uma conexão direta com o rio, como costumavam ter antes, até o início do século XX, quando nadar no Sena foi proibido.

GS: Você foi uma das engenheiras do projeto de despoluição do Sena. O quanto é importante ter uma mulher participando de um projeto como este?
CB: Esta é uma conquista pessoal para mim. É sempre uma alegria saber que algo em que você trabalhou e acreditou, um projeto tão grande quanto este, incluindo tantos atores diferentes, do nível local ao nacional, foi realizado. Mas esta alegria é a mesma para meus colegas homens! Todos nós somos inspirados por uma grande mulher, a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, e sua dedicação de longa data ao Sena.

GS: Como o projeto de despoluição do Rio Sena foi realizado?
CB: Recuperar o Sena tem sido uma longa jornada, e um dos primeiros passos foi votar a proibição de todos os veículos na rua principal que corre ao longo das margens do rio em 2015. Assim, pedestres e ciclistas se beneficiaram da ambição política obstinada da prefeita. Para trabalhar na qualidade da água, infraestruturas de saneamento de água foram construídas ao longo do Sena, em Paris, mas também na parte de cima do Sena e no rio Marne. Especificamente em Paris, o “Plano de Natação” incluiu residências conectadas e casas flutuantes aos sistemas de esgoto da cidade, pois, antes, os resíduos não tratados eram despejados nos rios. Outra grande infraestrutura foi construir no coração de Paris a “bacia de armazenamento de água de Austerlitz”, concluída em maio passado. Este tanque de água subterrâneo pode conter até o equivalente ao volume de 20 piscinas olímpicas e tem um objetivo principal: durante eventos de chuvas pesadas, o reservatório será capaz de coletar a chuva, para que ela não seja descarregada no Sena com os sistemas de esgoto, e então passe a fluir para o sistema de esgoto de tratamento.

“Em tempos de secas e escassez de água, o assunto da água será uma questão crítica nos próximos anos. Para nos engajarmos nessa enorme tarefa de proteger nossos recursos hídricos, percebemos o quanto temos abusado de nossos rios. Nossos rios estão poluídos, e a limpeza do Sena permite que a cidade passe pela transição ecológica.”

GS: Como a despoluição do Rio Sena pode ser um exemplo para rios em outras cidades ao redor do mundo, como o Rio Tietê, em São Paulo?
CB: Em tempos de secas e escassez de água, o assunto da água será uma questão crítica nos próximos anos. Para nos engajarmos nessa enorme tarefa de proteger nossos recursos hídricos, percebemos o quanto temos abusado de nossos rios. Nossos rios estão poluídos, e a limpeza do Sena permite que a cidade passe pela transição ecológica. Acredito que Paris pode estar na vanguarda de muitas políticas públicas ambiciosas. Como uma prefeita socialista, Anne Hidalgo vem transformando a cidade para torná-la mais verde, mais acessível para bicicletas, mais inclusiva. Paris, como uma das capitais mais conhecidas do mundo, deseja ser um exemplo para outras cidades seguirem, e esperamos que elas possam aprender com nossa própria experiência com o Sena para seguir políticas semelhantes em seus próprios países e cidades.

GS: Como um evento como os Jogos Olímpicos transforma a configuração da cidade e deixa um legado para ela no futuro?
CB: Receber o título de “cidade-sede” dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos cria uma grande sinergia. De repente, percebemos que ter uma meta e um prazo claros ajuda todos a se unirem e a unirem suas forças. A organização desses Jogos sempre foi pensada para garantir que beneficiaria diretamente o povo francês e os parisienses. Criar ciclovias de quilômetros de extensão, limpar o Sena, renovar infraestruturas esportivas, investir em nossos transportes públicos, bem como aumentar a quantidade de vegetação e espaços verdes em áreas urbanas, tudo isso contribuirá para melhorar diretamente a qualidade de vida dos parisienses.

GS: O que é a cidade de 15 minutos? E como Paris se adaptou a esse modelo?
CB: A cidade de 15 minutos é uma abordagem visionária de desenvolvimento urbano e mobilidade desenvolvida pelo urbanista e pesquisador Carlos Moreno. Ela se baseia na ideia de que todos os moradores podem alcançar serviços essenciais (como moradia, trabalho, comércio, saúde, educação e entretenimento) a 15 minutos de caminhada ou de bicicleta de suas casas. Anne Hidalgo promoveu isso em Paris desde 2019 para transformar nossa cidade em resposta à crise climática que estamos enfrentando, aos impactos da pandemia de Covid-19, e às necessidades dos parisienses. Estávamos convencidos de que nossas escolas devem estar no coração de cada bairro e conseguimos. Desde então, temos melhorado os serviços públicos em cada bairro.

A prefeitura de Paris tem adotado o conceito de “Cidade de 15 minutos” | Foto: Joséphine Brueder/Reprodução Ville de Paris

GS: Na sua opinião, quais são os pontos positivos e negativos? Qualquer cidade poderia se adaptar a esse modelo?
CB: Os aspectos positivos são inúmeros! A qualidade de vida das pessoas é melhorada, os tempos de deslocamento são reduzidos e, ambientalmente, conseguimos reduzir as pegadas de carbono. Os pontos negativos podem ser custos complexos de planejamento e infraestrutura, pois pode haver desafios de implementação. Esse conceito tem que ser aplicado de acordo com cada cidade porque elas são diferentes e a adaptação aos contextos locais é necessária. Respeitar o equilíbrio de todos os bairros e saber onde maximizar nossos esforços é essencial.

GS:  Você acredita que este conceito permitiu que os prefeitos questionassem seu papel político no futuro de suas cidades?
CB: Como uma capital que tem influência e muito eco no resto do mundo, dar o exemplo é o que mais importa. Em Paris, tomamos o exemplo de outras cidades e tentamos sempre olhar boas iniciativas sendo implementadas em outros lugares para maximizar a eficiência de nossas próprias políticas. É sempre uma situação ganha-ganha. Na semana passada, a prefeita recebeu uma centena de prefeitos de todo o mundo para trocar ideias sobre tópicos climáticos e experiências. É assim que todos nós mudamos nossas cidades!

“Há uma conveniência real em se locomover por Paris a pé porque a cidade é projetada para pedestres. A prefeita de Paris contribuiu muito para isso, tornando a cidade ainda mais agradável para eles. Reduzir o número de carros foi essencial, e essa diminuição é evidente há anos.”

GS: Paris é a cidade que simboliza as pessoas que andam e ocupam as ruas da cidade. Como isso é importante para a conscientização das pessoas sobre o espaço público?
CB: Os benefícios incluem maior espaço público para pedestres, bem como ar mais limpo e menos barulho. Os parisienses podem ver essas mudanças que foram feitas e podem apreciar mais a cidade, definindo seu próprio ritmo para relaxar e apreciar a arquitetura de Paris.

GS: Você também é um flâneuse? Caminhar pela cidade faz parte da sua rotina?
CB: Sim, com certeza! Já que caminhar é o principal meio de transporte, ir a lugares a pé pode ser a maneira mais fácil de se locomover de um ponto a outro em Paris e é a mais agradável. 

GS: Como você acha que as mulheres de outras cidades, como São Paulo, podem se inspirar no exemplo das mulheres francesas?
CB: Não sei se as francesas são muito diferentes das outras, mas sei que todas as mulheres mostram que, por meio da educação, do ativismo, da defesa de políticas de apoio e de redes fortes, elas podem alcançar maior empoderamento e contribuir para suas sociedades. O importante para nós, como líderes políticas em todos os níveis, é dar o exemplo e implementar políticas específicas para apoiar as mulheres. Na França, consigo pensar em dois marcos importantes: a lei sobre paridade de gênero votada em 2000 para permitir que as francesas acessassem altos cargos políticos e promovessem a representação igualitária de mulheres e homens em cargos eleitos. Mais recentemente, em 2024, a constitucionalização dos direitos ao aborto trouxe grande alegria, pois solidificou as proteções para todas as mulheres e meninas. É uma mensagem poderosa sobre o comprometimento da França em liderar em questões tão importantes. Tenho trabalhado como senadora no tema de famílias monoparentais que são lideradas por mães solteiras em 80% dos casos. Precisamos reconhecer seus desafios únicos e fornecer a elas mais flexibilidade no trabalho, vantagens para ter acesso a assistência médica, por exemplo, e licença médica adicional para filhos.

Mais notícias

Lifestyle

Lalai Persson

A publicitária, criadora do “Chicken or Pasta”, tem as descobertas da cidade como seu alimento de alma. E fez disso sua ferramenta de trabalho onde estiver. Por Graziela Salomão

Cultura

Bruna Mitrano

Confirmada na FLIP 2024, autora de “Ninguém quis ver” carrega para a sua escrita as vivências na periferia de um Rio de Janeiro que não tem vista pro mar. Por Larissa Saram

Direitos

Rafaela Albergaria

Articuladora política e idealizadora do Observatório dos Trens fala sobre como  a negação do direito de ir e vir é o ponto de partida para ampliar todas as desigualdades nas grandes cidades. Por Larissa Saram

Comportamento

Laila Zaid

Atriz e ativista faz uso do humor e da ironia pra explicar a urgência da crise climática para todo mundo entender. E a popularidade nas redes prova que a estratégia tem dado certo. Por Larissa Saram