Cultura

entrevista com Bruna Mitrano

“É bonito pensar que a gente está criando arte na periferia e que conseguimos dialogar com periferias do Brasil todo”

Confirmada na FLIP 2024, autora de “Ninguém quis ver” carrega para a sua escrita as vivências na periferia de um Rio de Janeiro que não tem vista pro mar. Por Larissa Saram

A poetisa carioca Bruna Mitrano | Foto: Thais Alvarenga | Divulgação

Logo no primeiro poema de “Ninguém quis ver” (Companhia das Letras), Bruna Mitrano dá as coordenadas geográficas para onde nós, leitores, vamos olhar: “moro a setenta quilômetros do mar / moro a duas horas e meia do mar / moro a dois ônibus ou / vinte e quatro estações de trem e / onze estações de metrô / do mar”. Latitude e longitude são medidas a partir de um espaço de poder. E é para o oposto desse lugar, longe dos grandes centros, na periferia do Rio de Janeiro, que somos levados. Uma expedição sem metáforas por ruas onde as casas são erguidas em frente a valas e têm santos de barro para proteger da fome.

O segundo livro da autora nascida em Senador Camará e que vive hoje em Cosmos, considerado o último bairro da cidade, chamou a atenção dos críticos pelo trabalho contundente de denúncia, construído com palavras concretas e salpicadas de afeto. E da população que quase nunca vê o lugar onde mora como inspiração para poesia.  

Bruna é uma das autoras confirmadas na programação da 22ª Festa Literária Internacional de Paraty, que acontece entre 9 e 13 de outubro – ela participa ao lado de José Falero e Stephanie Borges da mesa “A cidade contra nós”. Será uma estreia cheia de simbolismos: “Vou à Flip há muito tempo, mas nunca estive na tenda dos autores. Por falta de grana, mesmo. É a primeira vez que vou estar lá, que vou entrar, e vai ser como convidada, no palco. Isso é muito significativo. Fiquei emocionada”, contou Bruna na nossa troca de mensagens pelo WhatsApp, que resultou nesta entrevista para o “Mulheres e a Cidade” . Ela falou sobre memórias na rua, belezas da periferia e a influência da religião e do punk rock na sua escrita.

Foto: Thais Alvarenga | Divulgação

Larissa Saram: Você nasceu em Senador Camará, na periferia do Rio de Janeiro. Sempre teve uma relação de intimidade com a rua?
Bruna Mitrano:
 Como a minha casa era um lugar de insegurança, a rua foi muito importante para a minha formação, para eu ser quem sou hoje. Eu era uma criança que subia em árvore, em muro, que fugia pra ir sozinha pro Maciço da Pedra Branca. Na adolescência, andava com a galera do rock e quase não parava em casa. Estudava em período integral e comecei a trabalhar com 16 anos, então chegava tarde, ia para showzinho de hardcore, virava à noite, não dormia. Fui expulsa de casa pela minha mãe três vezes, com 13, 15 e 17 anos. Só voltei porque era menor de idade e a polícia não deixava ficar. Morava numa subidinha de terra, num lugar bem pobre, bagunçado, onde a polícia só chegava quando tinha algum problema. E aí você imagina, uma menina branquinha, magrinha, cabelo liso, bem padrão, subindo o morro com dois policiais pra voltar pra casa. Era sempre uma grande tristeza. Nunca falo sobre esse período que fiquei longe de casa, que fiquei teoricamente em situação de rua, apesar de ter amigos para me acolher, porque é difícil falar que fui mais feliz na rua do que dentro de casa. Eu sei o quanto perigoso é isso, o quão grave é isso, mas a rua foi minha grande escola. É quase um clichê, mas foi importantíssimo para mim.

LS: E hoje? Como é a sua relação com o lugar onde mora?
BM:
Agora eu estou morando em Cosmos, que é perto de Santa Cruz, o último bairro da cidade. Ainda Rio de Janeiro, já chegando em Itaguaí. É difícil falar sobre a relação com o espaço onde eu moro, estou aqui quebrando a cabeça. Vou por partes: na infância e no início da adolescência, tinha certeza de que o Rio de Janeiro se resumia a Bangu, Campo Grande, Santa Cruz, que são os bairros da Extrema Zona Oeste, e que se tivesse alguma coisa além daqui, teria a mesma cara. Então você imagina o meu susto quando fui na Zona Sul pela primeira vez.

“Fui de calça jeans e tênis
pisar na areia de Copacabana.
Fiquei deslumbrada! Mas o
problema mesmo aconteceu
quando comecei a estudar e
trabalhar porque me dei conta
de que essa cidade tem
uma grave deficiência
de mobilidade. E aí que
fui entender que lugar
era esse onde eu tava”

LS: Tem memória desse dia?
BM:
Não esqueço disso, foi numa excursão da igreja, fui de calça jeans e tênis pisar na areia de Copacabana. Fiquei deslumbrada! Não vi quase nada e fiquei deslumbrada. Mas o problema mesmo aconteceu quando comecei a estudar e trabalhar porque me dei conta de que essa cidade tem uma grave deficiência de mobilidade. E aí que fui entender que lugar era esse onde eu estava. Mas apesar de ter consciência dos problemas daqui, de saber que é um lugar abandonado pelo poder público e que diante desse abandono a gente tem a presença do Poder Paralelo e de todas as violências, tem aqui uma coisa que me agrada, que são as ruas espaçosas. Parece que aqui é mais respirável. No centro da cidade me sinto sufocada, até mesmo na zona sul, que tem um mar.

LS: É possível pra você enxergar beleza em cidades tomadas por desigualdades?
BM: Acho terrível que quando a mídia mostra esse lugar onde moro, é só a parte da violência. E isso tem a ver com a existência de um projeto muito bem estruturado de exclusão dos espaços considerados periféricos. A violência vai existir em todos os lugares, só muda o tipo. Quando eu vou em Copacabana, por exemplo, que é conhecida internacionalmente como cartão postal da cidade maravilhosa, vejo ali centenas de pessoas em situação de rua. E acho que não existe nada mais violento do que desumanizar alguém, do que você tirar dessa pessoa a identidade, o direito à cidade. Não tem imagem mais violenta do que uma pessoa passando por cima de outra, que tá debaixo de um cobertor, como se não tivesse ninguém ali. Então a violência sempre vai existir. Agora se a mídia escolhe destacar desse lugar aqui a violência, é porque tem uma intenção nisso, porque não é só violência, tem muita beleza, muita produção artística, senso estético, senso crítico. Tem tudo. 

O segundo livro de Bruna Mitrano, "Ninguém quis ver"(Companhia das Letras)

LS: Ia perguntar sobre a produção criativa da periferia. Como você analisa essa produção, o que tem visto recentemente que te chamou a atenção?
BM:
Interessante você perguntar isso porque de alguma forma estou envolvida com essa produção de arte e cultura na periferia desde desde os anos 2000. Vi muitos coletivos nascerem, alguns infelizmente não existem mais, mas estão nascendo novos. E estão nascendo também espaços de promoção e produção, vou destacar alguns: tem aqui entre Santa Cruz e Sepetiba uma comunidade chamada Nova Sepetiba e lá tem o Instituto Territórios Diversos, com oficinas, festivais enormes, uma biblioteca chamada Estação 67, com um acervo lindíssimo. O legal daqui, Larissa, é que quando tem evento, são grandes e eles se apropriam de todos os espaços. Ali no Instituto, por exemplo, na área externa, tem uma fogueira com contação de história, dá para colocar palco, tem show, cinema a céu aberto.  Aqui no meu bairro tá surgindo um espaço novo, de um articulador cultural chamado Betto Balleiro. É um lugar onde tem livros, discos, a gente vai para ouvir música. Aqui no Santa Cruz tem espaço já antigo, lindíssimo, o Ser Cidadão, que tem festivais de literatura, de arte e, em geral, esses festivais são muito grandes, envolve muita gente, é uma pena que essa parte não seja vista, né? É bonito pensar que a gente tá criando arte na periferia e para a periferia. E que de alguma forma a gente consegue dialogar com periferias do Brasil todo. Eu percebo isso, até comigo acontece, sou convidada para para participar de eventos em periferias de São Paulo, em periferias de outras cidades, mais do que no centro da minha própria cidade. 

LS: Quais são os lugares que fazem parte da sua rotina e que te inspiram?
BM:
Eu não acredito que a gente cria a poesia, acho que ela está no mundo e a gente esbarra com ela. Tem um lugar que vou para buscar esse encontro, que é muito especial para mim, que é a Pedra de Guaratiba. É um manguezal e o mangue não é atraente porque quando a maré está baixa, e durante grande parte do dia ela está baixa, fica pura lama. E eu acho que a lama tem esse poder criador, né? Gosto de sentar no Píer, principalmente numa parte, acho que nem devia estar falando isso (risos), que  está interditada, só quem entra são os moradores e as pessoas metidas como eu, que vou lá para escrever. E às vezes nem escrevo, fico com meu caderninho ouvindo os sons, tem muito vento, muito bicho. É um lugar que me faz bem. E no geral caminho muito com meu cachorro e frequento pracinhas.  Aqui tem praças grandes, então gosto de sentar naquelas mesas de tabuleiro e escrever ali. Planejo cursos, oficinas e muitos poemas nascem nesses lugares. Como comecei a escrever dentro de trem, agora que não estou precisando me deslocar tanto, sinto falta do barulho, do movimento, porque ali eu ia recolhendo as imagens para colocar na minha poesia. Como não tenho mais essa obrigação, eu mesma procuro o caos de alguma forma.

LS: Assisti a sua entrevista para o “Trilha das Letras” e você contou que era uma adolescente evangélica que adorava ouvir punk rock, uma anarcocrente. Como essas influências refletem no seu trabalho hoje?
BM:
Acho que foi a primeira vez que falei sobre isso em público. “Anarcocrente” foi uma expressão que criei ali, na verdade hahaha. É curioso você pensar que é anarquista, ou seja, que você acredita numa horizontalidade, é contra ídolos, mas tem ali uma liderança, que é o pastor da igreja, e também acredita em Deus. Acho legal que existam muitas dessas contradições e acho bonito um lugar que assume essas contradições. A religião entra muito forte no meu livro numa espécie de reforço da culpa. É um tema recorrente, se a gente pensar em temas – o que é difícil, se tratando de poesia. A mãe é sempre essa figura que traz a culpa, a igreja não aparece ali, mas acho que tá nesse lugar. E o punk vem na parte da crítica. O punk foi a porta de entrada para o meu posicionamento político, para a minha participação em movimentos sociais, de me colocar à esquerda. Eu não tinha essas referências, o punk rock me mostrou muita coisa, me mostrou o que as pessoas não querem ver, o que que tá errado, o que que precisa mudar. E a minha escrita é quase toda isso. 

“Cada vez que eu lia
um poema, rebuliçava
todos os meus órgãos.
Era uma coisa de corpo.
E nova. Chegava a ser
assustadora de tão grandiosa.
Até hoje experimento isso”

LS: E como foi o caminho até a poesia?
BM:
Boa pergunta. Não sei dizer exatamente quando foi esse encontro, a poesia foi um grande acaso na minha vida. Fiz um Ensino Médio Técnico em Informática, me dei conta de que não tinha nenhum talento praquilo. Lá no Ensino Médio colegas mais bem informados e os próprios professores me mostraram que eu podia fazer uma universidade. Não fazia ideia de que aquele espaço também era para mim, que existia universidade pública gratuita, que era só fazer uma prova e, de repente, passar. Aí tentei os cursos mais fáceis, pensei em Letras pra virar professora de língua portuguesa, e no meio do caminho tinha uma poesia. Fui me apaixonando por literatura de uma forma que não imaginava. Foi aquilo que realmente mexeu comigo, um tesão inexplicável. Cada vez que eu lia um poema, rebuliçava todos os meus órgãos. Era uma coisa de corpo. E nova. Chegava a ser assustadora de tão grandiosa. Até hoje experimento isso. No final de cada oficina, sinto um cansaço, mas ao mesmo tempo uma leveza, como se adrenalina de ler poesia fosse quase que um sexo mesmo, como se fosse algo orgástico.

LS: “Ninguém quis ver”, seu segundo livro,  é um livro de denúncias. Como enxerga a poesia nesse lugar de debater temas que são pessoais, contam da suas experiências, mas são muito coletivas também, como moradia. 
BM: Falo de coisas que experimentei e falo de coisas que para mim são verdade, mas não necessariamente são acontecimentos reais, porque a verdade da poesia é um pouco essa invenção. Mas eu sabia que teria identificação e isso me preocupava, não me deixa feliz, claro, porque são experiências muito duras, mas eu entendo a importância desse identificação, entendo a importância de você falar sobre um evento traumático. Encontrei uma forma de falar na poesia e sei que muitas pessoas ainda não encontraram a sua, então quando elas veem ali um personagem num conto, num romance ou uma voz poética na poesia, falando sobre algo que elas experimentaram, que elas estão experimentando, elas começam a ter essa coragem de falar também. Tem aí um pouco do poder transformador da poesia, da literatura. Acredito que a literatura tem esse poder de transformação. E digo mais, acho que quem não acredita ou é porque acha que não tem nada para ser mudado ou porque não quer a mudança, porque está muito cômodo do jeito que tá. Está num lugar de privilégio. E se a poesia tem esse poder, porque não usar um pouco dele? Fiz já nessa intenção, mesmo.

Bruna Mitrano numa noite de leitura para celebrar o Dia da Visibilidade Lésbica, na Livraria Pulsa, no Rio | Foto: Reprodução Instagram
Foto: Emylly Oliveira | Reprodução Instagram

LS: Como foi o processo de escrita do livro?
BR:
Depois da publicação do meu primeiro livro, que se chama “Não”,  eu já tinha entendido que a poesia era o que eu queria da minha vida. Fui escrevendo “Ninguém quis ver” sem pensar nele como unidade. E aí chegou o momento que eu falei “vou juntar”. São poemas muito diferentes, abordam assuntos muito diferentes, por isso que ele é um livro dividido em seções. Tirei alguns, que achei que realmente não faziam o menor sentido, tentei costurar e quando vi que tinha um material mais coeso, resolvi publicar. 

LS: E qual foi a sensação de ver o livro na rua?
BM:
A publicação tem uma coisa maravilhosa, que é você ter o feedback de pessoas completamente diferentes, de lugares diferentes, com experiências diferentes. É lindo demais. Tem acontecido uma coisa com o meu livro que é extremamente gratificante, que eu estou vendo que ele tá chegando para um público que não é leitor de poesia. É um público que não é nem leitor e isso me emociona demais. Estou falando com você aqui e fico arrepiada porque é muito bonito receber o retorno de uma jovem, por exemplo, que diz que leu o livro e sentiu vontade de escrever por causa dele. De uma senhora que mora onde eu moro, que leu o meu livro e se identificou. Tenho recebido feedbacks muito bonitos até de criança. Tem criança lendo meu livro! É a parte mais bonita da publicação, ter esse esse retorno não necessariamente elogioso e de críticos, de estudiosos, mas daquelas pessoas que tem experiências muito parecidas. Essas pessoas que eu falo que são os meus né? Vizinhos, pessoas que lotam os trens, que os trabalhadores braçais, essa galera que não tem uma prática de leitura.

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