Comportamento

entrevista com Melina Danza

“Caminhar pela cidade é mais do que uma prática física ou turística, é uma prática psicológica”

Para ampliar seu repertório de vivências e fazer caminhadas urbanas exploratórias, a psicóloga criou o Movimento Ruar para quem quer descobrir as ruas sob novas óticas. Por Graziela Salomão

A psicóloga e arteterapeuta Melina Danza descobriu novas formas de se reencontrar consigo mesma e com a sua criatividade através da caminhada | Foto: Arquivo Pessoal

Viver e experimentar a cidade através da caminhada. Esse deveria ser um ato seguro e habitual para mulheres de qualquer lugar. Só que sabemos que, infelizmente, não é. A cidade e toda a sua complexidade atravessam os corpos de formas diferentes, principalmente quando pensamos em gênero, raça e classes sociais.

Depois de muitos atendimentos de pacientes em seu consultório, apenas a prática clínica com suas teorias, técnicas e pouca criatividade não faziam mais sentido para a psicóloga e arteterapeuta Melina Danza. Foi pensando em como sair das salas individuais e se encontrar com o coletivo que Melina teve a ideia de criar o Movimento Ruar. “Na minha investigação, encontrei as flâneuses, as caminhantes urbanas, o que me abriu uma porta. Iniciei outras pesquisas sobre caminhadas urbanas, movimentos de errâncias, urbanismo, movimentos artísticos pós-modernidade. O resultado da associação de ideias de uma longa caminhada, atravessada por minha história de vida pessoal e sobre dilemas vivenciados na prática da clínica psicológica, é o Ruar“, conta, em entrevista ao Mulheres e a Cidade desta semana. 

O Ruar já está na 10a edição e é definido como uma caminhada exploratória urbana como experiência crítica e estética. “O ritmo da caminhada é lento, não temos um roteiro definido e caminhamos solitariamente“, explica a psicóloga. Ela sempre escolhe um ponto de encontro na cidade, que só é revelado para quem se interessa pela caminhada dias antes de acontecer. Ali, elas se encontram e saem, sozinhas, para suas vivências pelos entornos do local. “As caminhadas são sempre potentes para nos transformar“. 

Graziela Salomão: A proposta do Ruar une o movimento da caminhada e o contato com o mundo, certo?
Melina Danza: O Ruar tem suas especificidades: o ritmo da caminhada é lento (para proporcionar a atenção e reflexão), não temos um roteiro definido e caminhamos solitariamente (a possibilidade de criar uma rota pessoal com o impacto da ideia de se perder-encontrar) e o que chamo de incorporar (uma crítica à relação com nosso corpo e nossos sentidos, buscando mantê-lo desperto, sensível e presente). Acredito que, dentro do consultório, trabalhamos estes elementos. No Ruar, os vivenciamos.

GS: O que é caminhar pela cidade pra você? 
MD: Caminhar pela cidade é mais do que uma prática física ou turística, é uma prática psicológica. É um exercício de cidadania, de propor mudanças e ser transformado por elas. É buscar pistas em cada cantinho que possa contar uma história e abrir portas para outras. É uma alternativa que encontrei de ampliar meu repertório de imagens e referências. Ter outras visões, impressões, o que me ajuda muito no meu trabalho como psicóloga clínica e arteterapeuta. Me faz um bem danado, me acalma e me coloca como protagonista da minha história e das minhas escolhas. Hoje, o passeio para mim é uma das práticas mais importantes da minha rotina pessoal. 

Caminhar pela cidade transforma, acontece no presente, enquanto se caminha. E esse talvez seja um grande aliado no trabalho com os sintomas da modernidade extremamente acelerada

GS: O que isso caminhar pela cidade te transformou? 
MD: Tenho esta prática já faz alguns anos. Minha sexta-feira é sagrada, desde que me tornei autônoma e consigo administrar meu tempo. Durante a pandemia, se tornou ainda mais clara a importância. Caminhar pela cidade transforma, acontece no presente, enquanto se caminha. E esse talvez seja um grande aliado no trabalho com os sintomas da modernidade extremamente acelerada. 

GS: Como a cidade te atravessa? E como você acha que atravessa a cidade? 
MD: A cidade me atravessa como um Outro. Ela foi formada pelas trocas entre as pessoas e é onde experimento tudo aquilo que não poderia experimentar sozinha. Sons, cheiros, conversas, expressões, movimentos, cores, formas. É a experiência com a Alteridade, é a janela de muitas possibilidades de se relacionar. Quando penso no impacto contrário, me imagino tão pequena. Me parece algo como aquelas gotinhas de chuva na janela. Escorrem, atravessam o vidro, às vezes se unem a outras gotas, formam poças maiores, e despencam em maior velocidade. Às vezes só passam e não deixam nenhum rastro. Assim que me percebo atravessando a cidade: ora carregando um pouco dela comigo, ora sendo completamente insignificante a sua presença. 

Foto: Arquivo Pessoal

GS: Teve alguma experiência em alguma das caminhadas que transformou a sua vida? 
MD: As caminhadas são sempre potentes para nos transformar. Tenho algumas experiências que costumam envolver pessoas que encontro no meu caminho, ou que me encontram em seus caminhos. Na segunda edição do Ruar, caminhamos na região do Baixo Augusta em uma sexta feira à noite. Primeiro havia uma certa tensão para a aderência nesse encontro, o que era legítimo quando o convite envolve uma caminhada noturna com mulheres. Como me sinto responsável por quem participa, me preocupo com a segurança de cada uma. O coração fica na mão quando envolvemos outras pessoas nas nossas coragens. Nos reunimos e fomos para a rua. Neste Ruar, eu queria registrar as pessoas, mas me sentia um tanto desconfortável por parecer invasiva mirando uma lente fotográfica para o rosto de alguém. Fiquei pensando como poderia fazer isso ou quem de repente toparia posar para mim. Observei descendo a rua uma figura que me paralisou: um homem com um chapéu de abas muito grande, um casaco longo de patchwork todo colorido, uma pequena mala na mão. Me lembrou o Arcano 0 do Tarot: “O louco”.  Um arquétipo interessante e caricato das ruas. Precisava registrá-lo.  Ele passou na minha frente e resolvi segui-lo. Fui acompanhando e observando seus passos. De repente, ele parou no meio da calçada, colocou a mala no chão e eu, sem saber o que fazer, acabei seguindo em frente. Quando passei por ele, ouvi um “Ei! Você pode me dar sua atenção um minuto?”. Gelei, aquele medo que é só nosso, que só uma mulher sabe quando anda sozinha na rua e escuta uma voz masculina dirigida a ela. Parei de andar. “Oi, eu sou o Ricardo de Belo Horizonte, posso te dar um presente?” Nessas horas a gente nunca sabe o que fazer, se sai correndo, se abraça o diabo, se mete a louca. Resolvi encarar essa situação inusitada como o próprio presente que me foi oferecido. Ricardo começou a fazer uma pulseira para mim. Um fio com três pedras pequeninas e redondas as arrematavam. Enquanto criava, me disse que percebeu que, em São Paulo, as pessoas são muito medrosas, mas que se enganam sobre os perigos. Imaginem a minha cara neste momento prestes a achar que perderia a vida! Continuou amarrando as pedrinhas e dizendo que precisamos dar a chance para as coisas boas acontecerem e parar de achar que sempre tem alguém querendo nos prejudicar. Me entregou a pulseira, me desejou sorte para o lugar que estava indo, se despediu e seguiu seu caminho. Fiquei alguns segundos envolvida com a emoção da surpresa, com a adrenalina do encontro potencialmente arriscado e com aquele sentimento de sincronicidade que faz com que tudo pareça fazer sentido e estar conectado. Atravessei a rua para voltar para o ponto de encontro e fui abordada novamente por outro rapaz: Gabriel. E aqui seria outra história onde eu definitivamente entendi a diferença entre os perigos da rua. As ruas têm dessas coisas, em cada esquina um encontro, alguns arrebatadores que mudam tudo. 

GS: Você é psicóloga. Como o movimento de ir para a rua impacta na nossa saúde mental e emocional? 
MD: Como psicóloga arquetípica, trabalho com as imagens e com a imaginação. Logo, o “ir para rua” me parece uma imagem e tanto para discutirmos essa ideia de saúde. Gosto de pensar a rua como uma metáfora para liberdade, o que é “fora da casa”. Ir para rua também evoca uma provocação para um movimento da atitude, para o encontro de novas ideias e perspectivas. Esse contato com o “fora” de nós proporciona referências para elaborarmos nossas questões, estimula a nossa criatividade e nos auxilia na elaboração crítica da realidade. Adoecemos quando vivemos a partir de uma única visão, um único pensamento, nos impossibilitando de encontrar outras alternativas que nos ofereceriam saídas para muitos dos nossos dilemas da vida. 

GS: Quais são os benefícios de caminhar sozinha? E de caminhar acompanhada? 
MD: Caminhar sozinha te provoca na atitude sobre suas escolhas. Aqui você precisa decidir se vai para direita ou esquerda, se sobe ou desce a rua, se entra em um beco, se para para ver o céu, se topa em se perder e depois se encontrar. Você escolhe sua rota e seu caminho. Um desafio contemporâneo e tanto para um mundo exigente em direções. Caminhar acompanhada tem o prazer da partilha. De acompanhar o ritmo do outro, de ouvir devaneios alheios, de ser atravessado por outras percepções que não as suas, de poder olhar juntos na mesma direção e em direções opostas ao mesmo tempo. 

“Caminhar sozinha te provoca na atitude sobre suas escolhas. Você escolhe sua rota e seu caminho. Um desafio contemporâneo e tanto para um mundo exigente em direções”

GS: Que nova cidade de São Paulo você descobriu com a caminhada? 
MD: Estou ainda descobrindo sobre São Paulo. A noção espacial tem ampliado muito a minha percepção sobre esta cidade. Acredito que há muitas cidadelas dentro de uma metrópole. Tenho reparado o quanto a arquitetura das construções, os comportamentos, a mobilidade, as vozes mudam conforme cada bairro. E o quanto isso revela o estilo das pessoas e do espaço. Tenho aprendido muito sobre o medo de andar sozinha por ser uma mulher, entendido com mais profundidade sobre esta construção e descoberto o que é ameaça e o que é seguro, travando discussões sérias com muitos preconceitos. O caminho de descobertas é infinito dentro de um espaço que muda o tempo todo! 

GS: Quem são as flâneuses em que você se inspira? 
MD: Falar de flâneuses como referência inspiradora aqui no Brasil é complexo, visto que uma mulher que caminha nas ruas ainda não tem seu lugar de segurança e prestígio. Ao contrário, sofre ameaças e ainda utiliza a rua apenas como lugar de passagem. Mas o que tenho para dizer é que o Ruar é a possibilidade do encontro de “flanêuses” brasileiras, de mulheres interessantíssimas que tenho conhecido e que estão nas ruas porque querem. Que chegam com uma sensibilidade imensa, uma abertura ao inédito, curiosas e dispostas a impactarem a cidade e serem impactadas por ela. Estas mulheres me inspiram a continuar.

Mais notícias

Cultura

Jéssica Moreira

A jornalista, escritora e cofundadora da plataforma “Nós, Mulheres da Periferia” quer furar bolhas para falar sobre as vivências das mulheres periféricas. Por Graziela Salomão

Lifestyle

Madama Brona

Ex-advogada e agora uma das astrólogas mais bombadas da internet, Bruna Paludo conta como São Paulo foi o lugar de encontrar novos caminhos para a sua vida. Por Graziela Salomão

Direitos

Colombe Brossel

Senadora francesa e uma das engenheiras responsáveis pela obra de limpeza do rio Sena fala sobre a importância dessa ação para Paris e para a vida da população na cidade. Por Graziela Salomão

Cultura

Hela Santana

Roteirista de produções da Globo como “Histórias (Im)Possíveis” e “Encantados” fala sobre a influência do espaço urbano nas relações que construiu e em sua trajetória profissional. Por Larissa Saram