Cultura

entrevista com Hela Santana

“A nossa relação de corpos trans com o espaço urbano tem essa ambiguidade: é onde a gente vive e é onde a gente morre”

Roteirista de produções da Globo como “Histórias (Im)Possíveis” e “Encantados” fala sobre a influência do espaço urbano nas relações que construiu e em sua trajetória profissional. Por Larissa Saram

A roteirista Hela Santana | Foto: Lau Baldo @laubldo

A lembrança da infância vivida em Jequié, no interior da Bahia, foi dissolvida pelo tempo. Ficaram para trás os banhos de rio, as viagens de ônibus até a escola e os endereços. Quando pergunto para Hela Santana sobre suas memórias, é a chegada em São Paulo, na cidade de Sumaré, quando tinha entre 7 ou 8 anos, que tem contornos mais vívidos – e violentos. Bullying, racismo, transfobia: termos que não dão conta da brutalidade que começou no Ensino Fundamental e que só não se estende da mesma forma até hoje porque Hela escolhe circular por lugares em que se sente mais protegida.

Hoje, aos 33 anos, Hela Santana é roteirista da Globo. Produções como “Histórias (Im)Possíveis”, “Encantado’s” e “Elas por Elas” têm sua assinatura. “Pajubá”, seu primeiro longa, e que conta histórias cotidianas de pessoas trans – uma assinatura dos roteiros de Hela – deve ser lançado no começo de 2025. Nessa conversa para o “Mulheres e a Cidade”, ela conta sobre como realizou o sonho de trabalhar no audiovisual e como as vivências na rua foram determinantes para seguir esse caminho:

Hela Santana | Foto: Lau Baldo @laubldo

Larissa Saram: Você nasceu em Jequeié, na Bahia, mas veio pra Sumaré, interior de São Paulo, ainda criança. Tem memória de quando chegou aqui?
Hela Santana:
Eu tinha uns 7, 8 anos. Esse começo foi bem difícil, eu era uma criança muito pretinha, bem dentucinha, com o sotaque nordestino muito forte, afeminada. Na quarta série, por exemplo, uma menina da minha sala começou a chorar porque não queria sentar ao lado do macaco. E o macaco era eu. Tinha muita violência no primeiro ciclo da escola. Até o Ensino Médio, a narrativa, infelizmente, foi marcada por bullying, racismo, lgbtfobia. Tenho lembranças vivas de sofrer coisas grandes.

“Fui morar em Tremembé, depois
Guarulhos, depois vim aqui pra São Paulo.
Foi nessa época que comecei a conviver
com mais pessoas LGBT. No interior,
não tinha contato com elas. Trans, então,
nem fudendo. Foi quando comecei
a me relacionar mais com a cidade,
a sair muito, que conheci essa galera”

LS: Imagino que, por se tratar de uma cidade do interior, não havia muitas pessoas trans ao seu redor. Quando começou a ter mais contato com a comunidade LGBTQAPI+?
HS: Quando terminei o Ensino Médio, fui estudar Letras, depois Cinema, tudo na UNILA [Universidade Federal da Integração Latino-Americana], em Foz do Iguaçu. Não consegui me formar. Voltei para casa dos meus pais e fiquei mais dois anos lá até ser expulsa. Aí caí no mundo. Fui morar em Tremembé, depois Guarulhos, depois vim aqui pra São Paulo. Foi nessa época que comecei a conviver com mais pessoas LGBT. No interior, não tinha contato com elas, mesmo. Trans, então, nem fudendo. Foi quando comecei a me relacionar mais com a cidade, a sair muito, que conheci essa galera.

LS: Foi nesse contexto que começou a pensar em ser roteirista?
HS: Queria ser roteirista desde a adolescência, mas achava que era só um sonho. E também não era pra pobre, até hoje os livros são caríssimos. Mas nessas de conhecer gente nova em São Paulo, fiz amizade com a [cantora] Jup do Bairro e em 2019, quando ela foi lançar o EP “Corpo sem juízo”, me convidou pra escrever sobre. Escrevi um texto bem louca de ácido, parece, porque aquilo era uma brisa, estava mais para um conto científico do que para uma resenha (risos). A Jup gostou bastante e esse post causou um efeito dominó porque graças a ele, o Gil Baroni, que é diretor “Alice Junior”, um dos filmes nacionais recentes mais importantes para narrativas trans, chegou até mim. Ele também tinha gostado da crítica e me chamou para trabalhar Eu estava começando a viver publicamente como pessoa trans naquela época e eles precisavam de alguém pra ser Alice Junior nas redes, como se fosse uma pessoa real. E deu match! Fiquei trabalhando na produtora por 1 ano e meio e lá dentro retomei o desejo antigo de ser roteirista.

LS: E conseguiu realizar!
HS: Sim! Até então, minha formação como roteirista era por conta própria, com PDFs, livros doados – eu pedia na internet e muita gente que nem me conhecia, mandava. Aí, em 2020, veio a pandemia e foi um ano muito agridoce, porque ao mesmo tempo que vivíamos aquele terror, foi quando as coisas começaram a dar certo pra mim: o Laboratório de Narrativas Negras e Indígenas da Globo, em parceria com a FLUP [Festa Literária das Periferias], que rolava presencial no Rio de Janeiro, passou a ser online. Tirei um projeto do nada, eles gostaram e fui chamada. Aproveitei tudo, sabia que não teria outra oportunidade como aquela, de gente da Globo me olhando, gente que nunca imaginei na minha vida. Depois escrevi o argumento de um filme, o pessoal da dramaturgia gostou e me convidou para uma oficina de autores. De lá, rolou um convite para trabalhar no “Histórias (Im)Possíveis” e depois no “Encantado’s”, onde eu ainda estou. Deu certo!

Hela Santana | Foto: Lau Baldo @laubldo

LS: A gente sabe que por mais que seja ficção, sempre tem um pedacinho de você na história criada. O que você acha que te escapa nas suas produções ou o que, de propósito, você coloca?
HS: Sinto que tô ainda encontrando essa minha assinatura. Uma coisa que gosto, que depende de mim, se é uma criação minha, é sempre colocar corpos trans. Sei que é meio clichê falar isso – e se não é, deveria ser. A minha vida é muito pautada nesse lugar, o meu círculo social é majoritariamente trans. Faz parte do meu dia a dia conviver com pessoas iguais a mim, então acaba sendo natural porque a gente escreve sobre aquilo que a gente vive. Desde a jornada que é ir até a padaria comprar pão até questões mais complexas, de afeto, de sexo de briga, de ódio, de tudo.

“A gente vive mudando, geralmente
porque fomos expulsas de casa ou
porque não temos uma casa.
Esse é um drama cotidiano da
maioria das pessoas trans do Brasil,
que quando é retratado pela mídia
cisgênero, no geral, é no lugar da
espetacularização, que acaba sendo
mais esteriotipante do que reflexivo”

LS: Histórias (Im)possíveis tem um pouco disso?
HS: O projeto não é meu, sou só uma das roteiristas. Mas tem um episódio que a gente escreveu, o “Sísmicas”, que é sobre um casal de mulheres, em que o grande gatilho da Kátia, que é a personagem trans interpretada pela Kika Sena, é que ela acha que tem uma casa e quando chega lá, ela tem que sair. Aquilo, por exemplo, é algo que remete muito a minha trajetória em São Paulo. E não só minha, mas de pessoas trans, no geral. A gente vive mudando, geralmente porque fomos expulsas de casa ou porque não temos uma casa. Esse é um drama cotidiano da maioria das pessoas trans do Brasil, que quando é retratado pela mídia cisgênero, no geral, é no lugar da espetacularização, que acaba sendo mais esteriotipante do que reflexivo. Ser trans no Brasil não é fácil. A gente é o pais que… enfim, a gente sabe. É esse cotidiano que eu gosto de trazer.

LS: Você acabou de gravar o seu primeiro longa, “Pajubá”. Esse cotidiano que você comentou, que é um pouco a sua marca, também está presente no filme?
HS: “Pajubá” é um documentário bem performático. A minha ideia – e foi o que a gente fez – era registrar um monte de gente trans falando “eu existo”, de vários lugares diferentes do Brasil. Conversamos com Neon Cunha, Erika Hilton, Dan Abranches, Kaique Teodoro. Contamos a história dessas pessoas do ponto de vista da celebração, falamos sobre a humanidade dessas pessoas. A gente come, faz xixi, vomita na balada. A gente é normal como todo mundo é normal. Falando isso parece a coisa mais clichê do mundo, mas é raro de aparecer nas narrativas trans.

O primeiro longa de Hela, “Pajubá” tem previsão de lançamento para 2025 | Foto: reprodução

LS: Você tem medo de ficar marcada com o rótulo de roteirista negra, roteirista trans?
HS: Muita gente tem esse medo, eu não. Quero ser reconhecida como a roteirista negra e trans. É onde eu quero estar. Consigo escrever para qualquer gênero, mas quero escrever sobre pessoas trans. É a minha vida. Quero falar sobre o meu amigo que acabou de descobrir que está grávido e quer fazer um aborto, tá ligado? Esse amigo é imaginário, pelo amor de Deus (risos). Quero falar sobre a gatinha que quebrou a cara, fez merda e agora tem que consertar. É sobre o cotidiano, mas são histórias que ainda não existem, contadas desse lugar.

LS: Você circula com uma galera que conheceu na rua, na balada, quando chegou em São Paulo. Acha que o espaço público é o lugar de grandes encontros?
HS: É que a gente tá na rua, né!? Eu fui, literalmente, jogada na rua. Nossa história é essa, a gente vive na rua. Você anda por São Paulo à noite e você vê muita gente trans em situação de vulnerabilidade. A maioria de nós está na rua, então a gente se conhece é na rua. As maiores amizades trans que eu fiz foi nesse lugar, de se juntar no espaço público para dar rolê, para beber, pra se drogar, pra tudo. Hoje já não consigo ficar muito na rua, porque: pânico. Tá muito perigoso.

“Quero ser reconhecida como a
roteirista negra e trans. É a minha vida.
Quero escrever sobre pessoas trans.
Quero falar sobre o meu amigo que
acabou de descobrir que está grávido
e quer fazer um aborto, tá ligado?
Quero falar sobre a gatinha que
quebrou a cara, fez merda e agora
tem que consertar. É sobre o cotidiano,
mas são histórias que ainda não
existem, contadas desse lugar”

LS: Isso que eu ia te perguntar, ao mesmo tempo que a rua é o lugar do encontro, é o lugar da violência, né!?
HS: A nossa relação de corpos trans com o espaço urbano tem essa ambiguidade: é onde a gente vive e é onde a gente morre. Não temos escolha, não temos dinheiro pra ir prum clube caríssimo na Agusta, pra ficar a noite inteira bebendo. É mais um “vamos pra praça Roosevelt, vamos pro Largo do Arouche, prum slam na São Bento”. O espaço público em São Paulo foi onde criei laços, ainda mais porque não tinha endereço fixo. Cheguei aqui em 2016, até 2019 ficava pulando de um lugar para o outro. O corpo trans está tá na rua, por via de regra, infelizmente, porque vivemos à margem. O corpo trans, travesti e principalmente, negro.

LS: Você tem medo de sair na rua?
HS: Eu me sinto insegura em qualquer lugar. Tenho medo de andar na rua desde a adolescência. Gasto muito com carro de aplicativo e não é nem porque quero. É porque eu não consigo, às vezes, nem andar até o metrô.

“O corpo trans está tá na rua,
por via de regra, infelizmente,
porque vivemos à margem.
O corpo trans, travesti e
principalmente, negro”

LS: Você já mudou muito de casa, de cidade. Hoje São Paulo é a sua casa?
HS: Estou aqui há quase 10 anos, então, sim. Eu amo e odeio São Paulo, sem exagero. Minha vida aconteceu aqui, não tem como fazer de conta que não, mas é um lugar difícil de viver. Quero ficar mais um tempo e depois me estabelecer em outro lugar. Tenho vontade de voltar para o Nordeste, para Bahia. Mas hoje o lugar certo para estar é aqui.

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