Direitos

entrevista com Rafaela Albergaria

“A mobilidade é estruturante na forma como a gente existe na cidade”

Articuladora política e idealizadora do Observatório dos Trens fala sobre como  a negação do direito de ir e vir é o ponto de partida para ampliar todas as desigualdades nas grandes cidades. Por Larissa Saram

Rafaela Albergaria é mestre em Serviço Social, idealizadora e coordenadora do Observatório dos Trens, escritora, articuladora política do Movimento Mulheres Negras Decidem, membro da Coalizão MobilidadeTriplo Zero: zero mortes, zero emissões e zero tarifa. pré- candidata a vereadora na Cidade do Rio de Janeiro

Ativista por um Rio pra gente: dos trilhos ao asfalto. É assim que se define Rafaela Albergaria em seu perfil no Instagram – e o que primeiro chamou a minha atenção antes de convidá-la para uma entrevista para o Mulheres e a Cidade. Numa navegada rápida pelo feed e depois com a ajuda do Google, tracei o perfil dessa mulher de 34 anos que, a partir do assassinato da prima no sistema ferroviário da região metropolitana do Rio de Janeiro, fez da mobilidade um dos temas mais importantes de sua luta política.

Rafaela traz na bagagem o histórico de deslocamentos de uma família migrante, periférica, marcada pela violência policial e pelo racismo. Carrega também a militância política universitária na luta pelas cotas raciais. Hoje é mestre em Serviço Social, idealizadora e coordenadora do Observatório dos Trens, escritora, articuladora política do Movimento Mulheres Negras Decidem, membro da Coalizão Mobilidade Triplo Zero e pré- candidata a vereadora na cidade do Rio de Janeiro. Escreveu o livro “Não foi em vão: mobilidade, desigualdade e segurança nos trens metropolitanos do Rio de Janeiro” e foi uma das organizadoras de “Mobilidade Antirracista” (Autonomia Literária).

Na nossa conversa de quase duas horas, Rafaela detalhou com dados e exemplos como a mobilidade vai muito além do transporte e quais as mudanças mais urgentes podem promover transformações significativas na vida de todos que vivem nas cidades.

Larissa Saram: Os deslocamentos são uma das marcas da sua família. Qual é a história dela?
Rafaela Albergaria:
Nasci em Minas Gerais, cresci em Fonte Nova. A minha vó, minha mãe, minhas tias, todas elas começaram trabalhando no que foi a primeira usina de cana de açúcar em Minas Gerais, chamada Anna Florência. Minhas tias vieram para o Rio adolescentes, nessa lógica de deslocamentos das pessoas negras, pra trabalhar nas casas de veraneio dos donos da usina e de amigos dos donos. Minha mãe veio só em 2015. Mesmo separada do meu genitor, vivia sob ameaça, ele dizia que se ela se relacionasse com outra pessoa, iria matá-la. Eu e meus irmãos continuamos em Minas, vim pra cá com 17 anos pra fazer faculdade. Tinha muito o desejo de sair de Fonte Nova, por vários processos de violência que vivia naquele território, como o assassinato do meu tio, quando eu tinha 13 anos e ele, 19.

LS: Anos depois, já aqui no Rio, você viveu mais um episódio de violência com a morte da sua prima no sistema ferroviário. Como foi?
RA:
Sim, a Joana cursava Biologia na Universidade da Zona Oeste do Rio de Janeiro. No dia 4 de abril de 2017, a caminho da Universidade, a porta prendeu o corpo dela e a arrastou por 20 metros. A Joana foi arremessada no vão, que tinha mais de 50 centímetros. Eles deixam ela lá, estirada, por 8 horas. E depois de todas essas violências, a empresa concessionária disse que tinha sido suicídio. Logo em seguida ao sepultamento, começamos uma mobilização, primeiro, para dizer que não era suicídio, que era sistemático, porque todo dia a gente via algum caso similar, e também a lutar por justiça, por verdade, pela memória, diante das narrativas da empresa. 

“No dia do sepultamento da Joana, foi pra Marielle que liguei.
Ela ajudou muito nesse processo, inclusive de entender essas dimensões de luta por reparação da memória”


LS: Qual foi a importância da Marielle Franco nesse processo de mobilização no caso da Joana?
RA:
Conhecia a Marielle porque ela era da Comissão de Direitos Humanos e eu trabalhava no Complexo Penitenciário de Gericinó, muitas pessoas que eu atendia lá tinham sido encaminhadas da Comissão. No dia do sepultamento da Joana, foi pra Marielle que liguei. Disse: “O que definiu a morte da minha prima foi o racismo promovido pela ausência de estrutura de mobilidade nos territórios de periferia. E eu sei que não vou ter que te convencer disso, você sabe do que estou falando”. Ela ajudou muito em todo o processo, inclusive de entender essas dimensões de luta por reparação da memória. Ela também ajudou a alcançar a Assembleia Legislativa, a conseguir dados de ocorrência de violência nos trens pela Lei de Acesso à Informação

LS: E o que os dados apontavam?
RA:
Primeiro busquei os dados de violência no transporte ferroviário e o único que tinha era o DATASUS, que registrou dois atropelamentos em 10 anos. Para você ter ideia, a Joana morreu numa semana, na seguinte outra pessoa morreu no mesmo ramal. Então, estruturei um questionário e junto do meu irmão mais novo e uma prima, comecei a andar no trem para perguntar para as pessoas sobre as dimensões de violência, para entender, inclusive, quais eram os dados que eu precisava procurar. E aí essas pessoas foram falando de coisas que eu vivia, via diariamente, mas que nunca tinha enxergado.

Rafaela Albergaria com Carmen Silva e Preta Ferreira

LS: Tipo o quê?
RA:
A gente fez algumas entrevistas com pessoas do ramal de Belford Roxo, que é o pior. Ele atravessa o Jacarezinho, Costa Barros, Barros Filho, que são territórios majoritariamente negros, pobres, com os piores indicadores de desigualdade. E todas as mulheres que eu ouvia e que desciam na Vila Rosalí, que é uma estação que fica dentro de São João de Meriti e entre dois cemitérios, falaram que depois que escurecia, desciam uma estação pra frente e voltavam a pé. Isso porque a saída da estação é como um corredor, estreito, e várias mulheres já tinham sido assaltadas e estupradas ali. Todo mundo sabia disso, mas ninguém nunca fez nada.

“Descobri que o que eles tratavam como suicídio, na verdade, escondia uma diversidade de violências que acontecem nas estações: homicídio, estupro coletivo, polícia matando gente dentro da composição. Ou seja, uma série de violências em um lugar em que se cobra a passagem, que deveria ter algum tipo de segurança”

LS: Depois das entrevistas, quais dados entendeu que eram importantes?
RA: Fizemos mais de 18 pedidos à  Lei de Acesso à Informação, conversas com a Polícia Civil, com deputados, a Agência Reguladora de Transportes, que é quem tem que investigar casos de morte no transporte ferroviário. Levantei tudo que existia de regulamentação, de lei, e quem eram os sujeitos que poderiam ter as informações organizadas. Quando chegaram as informações, descobri que o que eles tratavam como suicídio, na verdade, escondia uma diversidade de violências que acontecem nas estações: violência doméstica, homicídio, estupro coletivo, morte por auto de resistência, que é a polícia matando gente dentro da composição. Ou seja, uma série de violências em um lugar em que se cobra a passagem, que deveria ter algum tipo de segurança. Depois de sistematizar as informações, a gente começou a incidir pela abertura de uma CPI para investigar todos esses casos. A CPI responsabilizou a empresa pelo assassinato  da Joana. E ficou demonstrado que a maioria das mortes não é por suicídio, é por negligência da empresa.  

LS: E esses dados foram usados depois?
RA: Sim, começamos a discutir essas dimensões de como o sistema produz insegurança. Recebemos relatos de outros casos, de pessoas que são mortas de várias formas, de como a violência praticada pelos agentes de segurança é profunda, dos impactos da falta de acessibilidade – das 104 estações, só 8 têm acessibilidade. Uma série de questões que aprofundam desigualdades. E então, em 2020, lançamos um livro chamado “Não foi em vão”, que faz esse debate sobre como a desigualdade tem uma marca racializada, de gênero. E também sobre como se organizam e se estruturam a mobilidade e os transportes na cidade. Os territórios que são periféricos e majoritariamente negros são desassistidos de qualquer garantia, como saúde, creche, e isso faz com que as pessoas tenham que se deslocar mais, mas a qualidade do serviço de transporte nesses territórios é muito pior. Então a possibilidade de realização, de sobrevivência, de subsistência dessas pessoas no acesso às políticas essenciais, como saúde, educação, trabalho, saneamento, são definidas pelo transporte e aprofundadas pela desigualdade, que é observada na forma como a mobilidade organiza a cidade.

LS: A mobilidade atravessa, de fato, todas as áreas da vida das pessoas.
RA:
A mobilidade é estruturante na forma como a gente existe na cidade. Tenho feito um debate sobre a mobilidade desde o processo colonial, porque ele foi movido por uma política estruturante de mobilidade, dos grandes deslocamentos, a partir dos países europeus e nos grandes atravessamentos de milhões de africanos, que foram vendidos como mercadoria, separados das suas famílias, destituídos da sua própria humanidade. A mobilidade não é só sobre o transporte, ela organiza a forma como as cidades estão estruturadas, quem passa e quem fica confinado. Ela organiza duas dimensões, de liberdade e de interdição. É muito importante para como a gente pensa a mudança e a condição de outra cidade.  

LS: Você é idealizadora do Observatório dos Trens, que faz pesquisas e promove mobilização sobre mortes e atropelamentos no sistema ferroviário da região metropolitana do Rio de Janeiro. Que tipo de trabalho vocês estão desenvolvendo agora?
RA:
A gente tem que se dedicado a produzir indicadores que revelam como o transporte impacta nas desigualdades. Ainda não conseguimos produzir dados primários para fatos sociais que a gente já reconhece. Por exemplo, se ampliou o número de pessoas em situação de rua, não temos dados primários para descrever essa realidade, mas a gente sabe, quando conversamos com as pessoas, que uma parcela significativa delas tem trabalho, tem casa, mas não consegue voltar todo dia por causa do preço da passagem. As pessoas não conseguem arcar com o custo e dormem, de segunda a sexta-feira, numa situação indigna, violenta. Cada vez mais, as pessoas não conseguem matricular seus filhos em escolas próximas de casa. E não tem gratuidade para o acompanhante, só para a criança. Como é que uma mãe leva o filho para a escola, se a escola está longe de casa e ela não tem gratuidade da passagem? Então debater tarifa zero e a ampliação da gratuidade é determinante e fundamental.

“Cada vez mais, as pessoas não conseguem matricular seus filhos em escolas próximas de casa. E não tem gratuidade para o acompanhante, só para a criança. Como é que uma mãe leva o filho para a escola, se a escola está longe de casa e ela não tem gratuidade da passagem? Então debater tarifa zero e a ampliação da gratuidade é determinante e fundamental”

LS: Você enxerga um caminho para isso ser aplicado?
RA: A gente tem experiências pelo país, hoje temos 106 cidades que implementaram tarifa zero. Um dos modelos mais avançados é o de Formosa, em Goiás. Com um ano de implementação, perceberam uma redução no custo da Saúde, porque as pessoas agora podem acessar, via transporte, a saúde preventiva. O gasto da Assistência Social também reduziu, porque as pessoas começam a acessar emprego e a sair das políticas de transferência de renda, como o Bolsa Família. O custo com transporte passou a equivaler a nem 1% do orçamento da cidade. E isso impacta numa série de coisas na organização da cidade. 

LS: E você acha que dá para ampliar para outras cidades? 
RA:
A gente participou da fundação de uma coalizão nacional chamada Coalizão Mobilidade Triplo Zero, que é zero mortes, zero emissão e zero tarifa, porque o transporte também é uma das principais políticas para reduzir a descarbonização. Nos centros urbanos, o transporte é responsável por 60% das emissões. Conseguir produzir políticas de mobilidade urbana de transporte público é conseguir garantir um ambiente mais saudável. O transporte é central para como a gente produz soluções para enfrentar a crise climática.

LS: Quais mudanças você acha que são mais urgentes para mudar a realidade da mulher nos grandes centros urbanos?
RA:
Fico pensando que é impossível pensar as mudanças que a gente precisa desassociado de quem decide sobre aplicação e condição de política pública. A política urbana e de transporte são elitizadas desde a sua concepção. Quem pensa a cidade, planeja espaços e políticas faz isso para territórios que desconhece, para pessoas que eles não sabem como vivem e com quem pouco se importam, São políticas que definem morte e temos uma demanda de produzir política de vida, que passa pela mudança desses lugares de poder. E isso é possível a partir de participação social. Por isso, avançar nessa discussão sobre mobilidade como direito social é muito importante. Se a mobilidade é algo que define a nossa existência, já que para tudo a gente tem que se deslocar, ela define nossa possibilidade de existir e acessar direitos, ela precisa ser entendida como uma política social essencial. Ela é determinante para como a gente consegue se instituir como sujeito de direito no espaço urbano. 

LA: O que que a cidade significa para você?
RA: A cidade é a possibilidade de existência, é onde a gente vive, se relaciona, trabalha, se encontra. Por isso, a cidade não pode ser pensada desassociada das demandas das pessoas. A cidade é a possibilidade de vida ou de morte e possibilitar a possibilidade de disputar cidade equânime, a cidade para as pessoas, é a possibilidade de conseguir alcançar um sistema, de fato, democrático. Não dá para pensar em democracia quando uma parcela majoritária da população não tem nenhum direito que está associado à possibilidade de uma sociedade democrática, não tem liberdade, não tem acesso a esses direitos básicos de humanidade.

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