Mesmo que você não seja mãe, observar e entender como a cidade acolhe crianças e mães em suas ruas e espaços públicos é importante. Cidades brasileiras nem sempre têm calçadas preparadas para que se possa andar com carrinhos, parques abertos para que os pequenos possam brincar e, até mesmo, em nível macro, direitos iguais para mulheres e homens cuidarem de seus filhos. Via de regra, a responsabilidade recai quase exclusivamente no colo das mulheres sob argumentos como “são elas quem têm instinto para cuidar das crianças” ou “mulheres são fortes e as únicas que conseguem conciliar todas as funções”.
Foi da observação profissional e experiência própria tanto no papel de mãe, quanto no de filha, que Vera Iaconelli, psicanalista e doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), percebeu a importância de nomear aquilo que a maioria das mulheres sente na prática: a sociedade joga em seus colos a responsabilidade do cuidado e isso está afetando, inclusive, o futuro das próximas gerações. A isso, Vera dá o nome de antimaternalismo, que defende em seu novo livro “Manifesto Antimaternalista – Psicanálise e Políticas de Reprodução” (Editora Zahar), que todos precisamos ser. “Ser antimaternalista é apostar em uma maternidade no futuro que seja menos opressiva, mas, além disso, é pensar nas condições reais para que haja uma próxima geração”.
E o impacto dessa defesa antimaternalista na história e vivência das mulheres no espaço público é essencial. “A cidade vira as costas e não é amigável para mães e crianças”, diz. Nessa conversa, a psicanalista abre as portas para a discussão sobre o mito do instinto materno e mostra como a cidade ainda reflete todos os tabus sociais a que as mulheres estão expostas.
GRAZIELA SALOMÃO: Em seu novo livro, você fala da importância de sermos antimaternalistas. Quando foi que percebeu a necessidade de se defender isso?
VERA IACONELLI: O antimaternalismo entra como uma questão pra mim quando consigo nomear as experiências que tive na minha vida como filha de uma mulher que teve seis filhos e abriu mão da sua carreira e da sua vida pessoal para cuidar deles. Entra também como mãe, tendo que organizar a vida de duas filhas e equilibrar isso com o trabalho, a vida pessoal, a vida pública. E ainda como psicanalista, escutando, no consultório, mulheres adoecendo uma vez que o maternalismo exige delas tudo como mães, mas continua esperando que elas cumpram as outras funções de prover a família, de trabalhar fora, e ainda ficar bonita, magra, sempre jovem. Esse acúmulo de pressões identifiquei como resultado do discurso maternalista. E nesse momento consigo nomear uma experiência que antes vinha só como mal estar, como incômodo. Ela passa a ser nomeada sob o guarda-chuva do maternalismo.
“Pensar no antimarternalismo não é pensar só no efeito que isso pode ter sobre as mulheres ou sobre a maternidade, mas é pensar no efeito que isso tem sobre as novas gerações”
GS: A maternidade como única responsabilidade feminina é uma armadilha ideológica?
VI: Maternidades existem muitas desde que o mundo é mundo, mas as formas de entender e pensar os discursos nos quais elas se apoiam são muito diferentes na história, nos povos, nas culturas. Então, a partir de uma certa cultura ou de uma época, você tem uma visão de maternidade. Quando a gente pensa que a maternidade é tudo na vida de uma mulher, é uma certa forma de entendê-la. E essa sim é extremamente opressiva.
GS: Ser antimaternalista também é uma forma de pensar que, para as próximas gerações, essa responsabilidade social destacada apenas para as mulheres não será tão grande?
VI: Ser antimaternalista é apostar em uma maternidade no futuro que seja menos opressiva, mas, além disso, é pensar nas condições reais para que haja uma próxima geração. Tanto pensando no déficit demográfico, porque as mulheres, mesmo quando desejam ter filhos, não querem ter esse tipo de relação que se estabeleceu na contemporaneidade, quanto pensando nas crianças, que vão ficando desassistidas quando estão sob inteira responsabilidade das mulheres, que nunca tiveram e não têm mais condição de assumir isso sozinhas. Pensar no antimarternalismo não é pensar só no efeito que isso pode ter sobre as mulheres ou sobre a maternidade, mas é pensar no efeito que isso tem sobre as novas gerações.
GS: A questão do afeto e da maternidade como algo instintivo da mulher também são argumentos que colocam as mulheres dentro de casa para que elas não ocupem os espaços públicos, você não acha?
VI: É muito importante, e eu tento deixar isso bem claro no meu livro, de onde surge o mito pseudocientífico do instinto materno entre humanos como sendo uma prerrogativa, uma condição natural biológica da mulher. Mostro em que momento e respondendo a que essa ideologia é construída e vendida até hoje. A gente tem que lembrar que o afeto entre humanos não é uma condição da mulher, mas sim dos humanos. Claro que os afetos entre os cuidadores de sua prole têm especificidades. Nem sempre acontece, é contingencial, mas quando acontece tem um caráter narcísico muito forte que faz com que o investimento na prole seja diferenciado. A gente pode pensar o afeto nas relações parentais, mas o que precisamos fazer é degenirificar e não imaginar que, porque a pessoa é mãe ou pai haveria uma qualidade intrínseca no afeto. Podem até ter condições que estabeleçam relações diferentes, mas elas não são naturais, são condições culturais.
GS: A cidade em si nunca é pensada para o acolhimento dessa luta antimaternalista. Ela realmente dificulta esse convívio de mulheres e crianças em seus espaços, não possibilitando o ir e vir com facilidade. Como esse ambiente social precisaria ser desenhado para acolher, também, essa luta?
VI: A cidade reflete uma forma da gente virar as costas para os cuidados com as crianças, né? Ela reflete uma mentalidade na qual o cuidado com as próximas gerações é de foro privado, como se não houvesse nenhuma questão pública colocada de quem teve o filho, e mais precisamente, a partir desse registro maternalista, da mulher. A cidade vira as costas e não é amigável para mães e crianças, que acabaram se tornando o núcleo duro do cuidado com as próximas gerações. A cidade reflete isso.
“Temos sociedades mais antimaternalistas relacionadas com o lugar da mulher na sociedade em geral ou mais feministas, mas estamos longe de qualquer coisa pensada como igualitária”
GS: A maternidade não precisa ser um beco sem saída para a vida das mulheres. Como você analisa e propõe essa mudança de paradigma?
VI: O cuidado com as próximas gerações é uma questão que está colocada para todas as sociedades humanas porque dependemos da descendência para continuar existindo. Não é um problema só da nossa cultura, da nossa época, é um problema colocado para todos e cada período teve a sua solução. A nossa solução tem sido a mais violenta, a que menos tem perspectiva de futuro. Quando a gente pensa em sair do modelo maternalista totalmente falido, que leva para uma maternidade colapsada que não dá conta de cuidar das próximas gerações pelas condições propostas, pensamos também numa mudança de mentalidade que inclua toda a sociedade. Não apenas a mulher ou o pai se virando para cuidar do filho, mas as empresas, o governo.
GS: Em toda a pesquisa sobre o tema e sua vivência nos atendimentos, você encontrou alguma cidade ou cultura que seja mais acolhedora ao pensamento antimaternalista?
VI: Embora a gente veja sociedades mais igualitárias para quem a ideia do lugar da mulher na sociedade se modificou a ponto dela poder estar descolada do lugar da mãe, que chamaríamos de sociedades menos maternalistas, ainda assim as diferenças são grandes. Temos exemplos de países nórdicos, nos quais a licença parental dividida entre homens e mulheres é longa e ambos ficam em casa cuidando da prole, e ao final desse período você vai ter homens que fizeram MBA estando em casa e mulheres que estão no mesmo lugar que estavam antes da licença. Temos muita coisa pra mudar não só no nível da lei, dos direitos, mas também na forma de pensar sobre de quem é responsabilidade pelas crianças. Temos sociedades mais antimaternalistas relacionadas com o lugar da mulher na sociedade em geral ou mais feministas, mas estamos longe de qualquer coisa pensada como igualitária.
GS: Como é uma maternidade/paternidade que possa ser considerada saudável?
VI: Uma sociedade que dá condições para uma maternidade e uma paternidade menos adoecida é aquela que se implica integralmente na responsabilidade com relação as suas crianças. Uma sociedade que pensa que um filho é cuidado pelos cuidadores principais, sejam pais, mães, parentes distantes, instituições, e dá suporte total para esses grupos, ao invés de virar as costas para eles e só exigir, se implica nessa tarefa pensando no futuro de todos. É uma sociedade que tem uma visão mais coletiva em relação a essa tarefa ética, em relação às próximas gerações e ao cuidado, dando mais condições para os sujeitos nessa função exercerem sua tarefa. Isso não é um determinante de que uma maternidade ou paternidade seja mais saudável porque são diversas variáveis que estão em jogo e cada um de nós tem histórias familiares, inconscientes que vão afetar a nossa parentalidade. Mas, na medida em que a gente tem condições sociais favoráveis, temos mais chance de lidar com aquilo que não estiver bom.