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entrevista com Carmen Lopes

“O espaço público é um bom lugar para cultivar rede de apoio e estabelecer novas conexões”

A assistente social e líder comunitária trouxe vínculos e dignidade para moradoras da Cracolândia com o coletivo “Tem Sentimento”, que oferece capacitação em costura e economia criativa. Por Graziela Salomão

A assistente social e líder comunitária Carmen Lopes | Foto: Arquivo Pessoal

Dignidade e vínculo podem mudar a realidade de uma pessoa. No coração de São Paulo, em uma das regiões mais marginalizadas da cidade, um ateliê de costura tenta trazer sentimento de pertencimento à cidade e à vida social para mulheres em situação de vulnerabilidade, muitas delas vindas do fluxo da Cracolândia. À frente dele, Carmen Lopes, assistente social e líder comunitária que, em 2016, fundou o Coletivo Tem Sentimento, para tentar, por meio da moda e da costura, acolher e ajudar a reconstruir vidas.

Carmen começou o trabalho na região como orientadora social, em 2013. Ver o dia a dia da população de rua do local e a falta de recursos para uma vida digna despertaram uma sensação de urgência para a necessidade de fazer algo por aquela realidade. No Dia das Mulheres de 2016, organizou uma oficina de costura de calcinhas não apenas para ajudar na doação da peça, difícil de ser conseguida, como também para resgatar memórias afetivas com a costura, já que é comum nas famílias a mãe, a tia ou alguém costurar. Ali nasceu o Tem Sentimento, que hoje atende cerca de setenta mulheres e já foi reconhecido com o prêmio Fashion Futures, do Instituto C&A.

Além de gerar renda, o projeto proporciona um espaço onde as mulheres podem descobrir uma rede de pertencimento entre elas e com a comunidade ao redor. ”E isso faz toda a diferença para a saúde mental e física dessas mulheres”, diz Carmen, na conversa desta semana do Mulheres e a Cidade. Carmen foi também uma das entrevistadas do report G.P.S. – Guia Para Socializar, recém-lançado aqui no site em parceria com a agência 65|10 que mapeia estratégias de conexão, redes de apoio e o papel do espaço público no fortalecimento da saúde social de mulheres.

Os encontros são mais potentes do que se pode imaginar. Eles trazem a vontade de sonhar de novo, de ocupar o espaço, de expandir os horizontes culturais e sociais. Localizado próximo a alguns dos principais museus da cidade, o Coletivo Tem Sentimento organiza visitas e estimula que as mulheres circulem por espaços públicos que antes pareciam distantes ou inacessíveis. “Nosso projeto acaba dando acesso para essas pessoas frequentarem esses lugares”, explica. A história de Carmen é também a história de resistir ao esgotamento e seguir entrelaçando linhas e memórias para construir um futuro melhor e possível para todes.

O começo do sonho do Coletivo Tem Sentimento | Foto: Arquivo Pessoal

Graziela Salomão: Como surgiu a ideia do projeto?
Carmen Lopes: 
O Coletivo Tem Sentimento surgiu de ações de autocuidado no território da Cracolândia. Comecei atuando como orientadora social e educativa, depois como assistente social. Todo final de semana, eu fazia uma ação de autocuidado para atender mulheres cis e trans. Pensamos em uma oficina para o Dia das Mulheres. Como a gente tem uma dificuldade muito grande em achar doação de calcinha, pensei numa oficina onde elas costurassem a própria calcinha. A partir daí percebemos que as pessoas têm uma memória afetiva com a costura porque a mãe, a tia ou alguém costuravam e pensamos no projeto de geração de renda através da moda e da costura.

GS: Como acha que impactou a vida da comunidade ao redor? 
CL: 
No começo do projeto, a gente atendia só pessoas que frequentavam o fluxo, usuários de substâncias químicas. Só que estamos numa comunidade onde tem muita ocupação com mulheres vulneráveis, e o coletivo começou a atender também essas mulheres em situação de vulnerabilidade. Essa é a conexão que o Tem Sentimento tem com a comunidade porque, hoje, temos várias meninas que moram em ocupação.

GS: Como você acha que o projeto estimula ou aumenta a conexão entre as pessoas da comunidade?
CL: 
Acho que o coletivo impactou mais, no primeiro momento, as pessoas que frequentavam o fluxo. Foi bem importante. A gente tem várias meninas aqui que eram frequentadoras do fluxo e, a partir do momento que elas têm um local, não estão mais em cena de uso.

GS: Como essa conexão melhorou a saúde emocional ou física das pessoas da comunidade?
CL: 
Quando a gente pensa em saúde emocional e física das pessoas, é importante pensar em um local onde elas têm pertencimento. E o coletivo Tem Sentimento tem muito disso porque traz essa sensação de pertencimento para elas. Faz toda a diferença para a saúde mental e física dela.

“Percebemos, fazendo visita a esses museus através do Tem Sentimento, que essa comunidade olha para esses equipamentos e não frequenta até por receio. A gente nota, depois, elas indo sozinhas visitarem. Então, nosso projeto acaba dando acesso para essas pessoas frequentarem esses lugares”


GS: E a sua saúde emocional e conexão com a comunidade?
CL: 
Tenho essa posição de líder no coletivo e tem prós e contras para a minha saúde mental e física. Tem época que dá aquela esgotada, mas, em compensação, também aquela satisfação de estar participando da comunidade. Isso acaba também te fazendo bem.

GS: Como acha que projetos como esse estimulam as pessoas a ocuparem mais os espaços públicos da cidade?
CL: 
Aqui na comunidade, a gente está cercado por vários museus. Percebemos, fazendo visita a esses museus através do Tem Sentimento, que essa comunidade olha para esses equipamentos e não frequenta até por receio. A gente nota, depois, elas indo sozinhas visitarem. Então, nosso projeto acaba dando acesso para essas pessoas frequentarem esses lugares.

GS: Você acha que tem receita para quem queira começar um projeto como esse?
CL:
 Não acho que tenha uma receita. Com o Tem Sentimento foi muita persistência. Quando a gente começou, eram pouquíssimas meninas, mas nunca tive a opção de desistir. Também nunca teve isso de pensar que o Tem Sentimento vai chegar em tal lugar. Nunca tive essa pretensão. Acho que a gente vai fazendo as conquistas pouco a pouco.

GS: Como você se conecta hoje com as pessoas? 
CL: 
A minha comunicação hoje é mais por celular enquanto virtual, mas sempre prefiro estar tête-à-tête com as pessoas. Aqui no Tem Sentimento, a gente tem um grupo no whatsapp, mas não é um grupo de trabalho. Tudo que tem que ser falado referente ao espaço deve ser aqui dentro. Fora, é brincadeira. Gosto muito dessa coisa de estar acompanhando tudo pessoalmente.

O Coletivo Tem Sentimento gera sensação de pertencimento e de família. | Foto: @joaoleoci

GS: Quando pensa em estabelecer uma conexão com alguém, para onde vai?
CL:
 O espaço do Tem Sentimento já estabelece uma conexão com as pessoas. A gente tem aqui no local um teatro e o coletivo. Tem uma conexão muito grande e aqui é um espaço onde vários coletivos se encontram. Quando quero conexão com alguém, estabelecer isso é nesse espaço.

GS: Considera o espaço público um bom lugar para cultivar rede de apoio e estabelecer novas conexões?
CL:
 Sim, o espaço público é um bom lugar para cultivar rede de apoio e estabelecer novas conexões. O diferencial é que ali você pode encontrar várias pessoas, e isso faz muita diferença quando pensa em uma rede. Um exemplo: a gente tem aqui perto o Museu da Língua Portuguesa, onde uma vez por mês temos uma reunião de rede com a vizinhança do entorno.

GS: O que faria do espaço público um lugar melhor para estabelecer essas relações?CL: Acho que os espaços públicos, muitas vezes, trazem uma burocracia que não precisa ter. A gente vê o exemplo de hoje de várias praças públicas. Está tudo cercado e isso dificulta tanto para frequentar ou para criar novas conexões nesses espaços.

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