Direitos

entrevista com Vitória Pinheiro

“Ter uma ótica que olhe para as questões de gênero é o que pode criar políticas com menos risco climático”

Ativista trans afroindígena faz das vivências pessoais na periferia de Manaus a fonte para pensar novas práticas de combate às catástrofes climáticas. Por Larissa Saram

O currículo impressiona: representante do Brasil na Conferência do Clima das Nações Unidas (COP-26), realizada em Glasgow, na Escócia, em 2021; única brasileira nomeada como Ponto Focal da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2022 – posto que tem como missão inserir crianças e jovens em espaços de decisões políticas; fundadora da Palmares, um laboratório que pensa e cria soluções para a justiça social para as juventudes periféricas de todo o país e diretora da PerifaConnection, plataforma de conexão e confluência das periferias brasileiras através da comunicação, formação e articulação. Aos 27 anos, Vitória Pinheiro já é um das vozes mais importantes na linha de frente ao combate às catástrofes climáticas que atingem o Brasil.

Nascida e criada em Zumbi dos Palmares, comunidade da periferia de Manaus (AM), a ativista carrega no corpo pautas que precisam, para ontem, integrar políticas de justiça climática: Vitória é uma mulher trans, negra, de descendência indígena e periférica.

Nesta entrevista para o Mulheres e a Cidade”, ela fala sobre a infância num lugar cheio de faltas, mas que foi essencial para sua formação e atuação hoje.

LARISSA SARAM: Você nasceu no bairro Zumbi dos Palmares, na periferia de Manaus, um lugar conhecido pela falta de segurança e desigualdade social. Quais são as suas memórias dessa época?
VITORIA PALMARES:
Eu não percebia que esse território era violento dessa forma. As periferias costumam ser muito marginalizadas, ainda mais quando a gente fala de Manaus. O que a gente pensa que são bairros periféricos são os subúrbios de juventudes negras indígenas, que não só não se percebem como também enfrentam situações do cotidiano, que incluem aviolência, tráfico de drogas, falta de acesso a saúde, educação. E isso também se reflete na vivência, né!? Quando eu era criança, tinha uma visão completamente diferente disso, brincava muito na rua, saía com os meus amigos para andar de bicicleta. As casas eram uns terrenos grandes e não tinha muito muro, então a gente corria pelos quintais, ia até o Igarapé, até a bica. Depois, a medida que fui crescendo, fui conhecendo esse lugar de outras formas. Chegou um momento em que a minha mãe não deixava mais eu ir para rua, e eu não entendia por que. Foi dessa forma que o lugar foi se revelando, sabe!?

LS: Então, no começo, você tinha uma relação legal com a rua, né!?
VP:
A rua sempre foi um pouco a continuação da minha casa e viver isso, assim, foi libertador. Por exemplo, a rua da minha casa, que é um lugar em que eu sempre tô, já não é da mesma forma, mas é uma mudança que quem vive na cidade absorve. Acho que isso formou quem eu sou hoje, as coisas que acredito e trabalho, que é a justiça climática . E de reconhecer nesse território também a precisão e uma extensão do quem sou eu.

Eu não tô fazendo justiça social,
ela é uma luta que tem que ser
passada por todos nós, é uma
luta por cidadania, por direitos,
devia ser ensinado na escola.

LS: Quando foi que você começou a mudar o olhar sobre o lugar onde morava e percebeu que era preciso se envolver com a comunidade para promover alguma mudança?
VP:
Tiveram vários episódios que concluíram para isso, sabe? Acho, inclusive, que minha forma de agir, mesmo ainda sendo uma jovem, foi tardia. Eu não tô fazendo justiça social, ela é uma luta que tem que ser passada por todos nós, é uma luta por cidadania, por direitos, devia ser ensinado na escola. Um momento que foi crucial na minha trajetória foi a minha mãe ter tomado conhecimento da existência da primeira escola integral pública de Manaus, que era a Djalma Batista [Escola Estadual de Tempo Integral Bilingue Professor Djalma da Cunha Batista]. A partir desse lugar pude conhecer um outro mundo, os professores prezavam por um ensinamento crítico. E minha mãe só ficou sabendo da existência dessa escola por causa do centro comunitário do meu bairro, do Zumbi. Lá, eu participava de projetos, recebíamos doações. Eesse lugar, que depois virou a ADCAM (​​Associação para o Desenvolvimento Coesivo da Amazônia), foi onde consegui meu primeiro emprego, como estagiária da Petrobrás. Então, tipo foi uma sequência de acessos, oportunidades que me fizeram perceber que esse ambiente em que eu estava era tanto potente quando deficitário de algumas coisas.

LS: E quando foi que começou o seu envolvimento com o ativismo ambiental efetivamente?
VP:
Foi a partir da participação com projetos comunitários. Participei do Grêmio Estudantil, lá a gente fundou o primeiro jornal da escola e fizemos matéria sobre esse assunto. Fizemos um mini documentário também, fomos gravando curtas, principalmente sobre saneamento, que é uma questão séria nas comunidades da Amazônia. Estamos falando da maior bacia hidrográfica do mundo e a gente tem parte da população sem acesso a tratamento sanitário. Isso é muito prejudicial. São as pessoas que mais vão sentir as mudanças climáticas que estão nesses cidades.

São as cidades que
vão ditar qual vai ser
o ritmo das mudanças
climáticas e se as ações
que a gente tem desenhado
vão ser efetivas

LS: Diante das catástrofes climáticas que tem acontecido com cada vez mais frequência no Brasil e no mundo, por onde você acha que as grandes cidades deveriam começar a se preparar para tentar reverter esse presente-futuro de tragédias?
VP:
Essa é uma grande questão, né? São as cidades que vão ditar qual vai ser o ritmo das mudanças climáticas e se as ações que a gente tem desenhado vão ser efetivas. Hoje, a gente vive mais de 80% dentro de centros urbanos. E eu acredito muito num olhar sistêmico para como é a dinâmica da vida na cidade e o que é que vai fazer com que a gente, de alguma maneira, possa mitigar os efeitos dessa crise que  já está aí. Temos que pensar em adaptações focadas na localidade, seja no município, seja no bairro. Acho que são as grandes saídas. Agora, neste exato momento, estou no bairro do Butantã, em São Paulo. Vi que aqui estão criando um corredor ecológico entre o parque, que já existe, e a Universidade de São Paulo. Essa é a importância da gente pensar essas soluções, de maneira a criar adaptação e conforto ambiental por um ecossistema que tá com um equilíbrio fragilizado. A Palmares participa de uma coalisão antirracista, para pensar as políticas de adaptação das cidades e principalmente em como que a gente pode participar do orçamento público, da destinação de recursos para obras de adaptação, para construção de infraestruturas que possam ser mais verdes. Acho que é o que vai nos ajudar nessa luta.

LS: O termo racismo ambiental tem ficado cada vez mais popular. Quais são os perigos do avanço desse tipo de racismo na nossa sociedade?
VP:
O termo racismo ambiental é bastante novo, está ficando popular e isso gera muita intriga e revolta. porque tem um nome racismo, né? Mas a gente pode pensar que racismo ambiental são dinâmicas que já estão postas na cidade e no território e agora ganham um nome de forma a gente evidenciar isso de maneira mais clara. E a gente só evidencia uma coisa com o intuito de resolver, problematizamos para poder resolver. Tem uma importância nisso, em reconhecer principalmente que essas comunidades que já estão margilizadas por serem racializadas não são só as mais vulneráveis, como devem ser os objetivos das políticas principais e de maneira inclusiva. Pensar racismo ambiental é crucial, mas tem que ir além da teoria, tem que ser aplicada no contexto das realidades periféricas.

As intersecções de gênero
e raça são cruciais quando
a gente vai olhar para as
questões de clima em
desenvolvimento ambiental
nos nossos contextos urbanos
hoje. Porque a gente sabe
que a cidade está em volta
de múltiplas dinâmicas e
essas dinâmicas também
passam pelas nossas
relações pessoais,

LS: A sua luta passa por questões de gênero e raça. Como esses temas se relacionam com o meio ambiente e a falta de planejamento sustentável das cidades?
VP: As intersecções de gênero e raça são cruciais quando a gente vai olhar para as questões de clima em desenvolvimento ambiental nos nossos contextos urbanos hoje. Porque a gente sabe que a cidade está em volta de múltiplas dinâmicas e essas dinâmicas também passam pelas nossas relações pessoais, que são relações de raça e gênero. Principalmente no contexto brasileiro, que é de muita desigualdade, as cidades exprimem também essas desigualdades, né? Ter uma ótica que olhe para as questões de gênero, para além da binariedade, que possa contemplar vivências plurais, como nós somos e como talvez seja a natureza, é o que pode criar políticas com menos risco climático.

LS: Que tipo de risco?
VP:
Quando eu falo de risco climático, eu falo do risco de gerar violências, por exemplo, como a construção de equipamentos de infraestruturas que geram mais danos para as comunidades que já estão assentadas do que se nada fosse feito. A gente tem vários exemplos assim no Brasil, como programas de habitação, que às vezes, retiram as pessoas do contexto em que passaram a vida toda e as levam para um lugar totalmente diferente, com a desculpa do reassentamento, do conforto urbano, mas que depois vai gerar um outro problema, como perda do emprego, porque o tempo de deslocamento até o trabalho fica muito longo, ou lugares sem escola e posto de saúde próximos. E isso gera ainda outro problema, agora no orçamento público, que podia ter sido destinado para um lugar que já tinha uma necessidade histórica daqueles aparelhos públicos. São fatores que quando não são olhados de forma sistêmica, geram mais questões. Por isso que olhar para as desigualdades de raça e gênero é crucial nesse sentido. É preciso olhar para as comunidades negras indígenas, que são a base deste país, como comunidades que precisam ter suas políticas de maneira adaptáveis a suas realidades.

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