Lifestyle

entrevista com Mariana Bueno

“As cidades são o que elas despertam na gente”

Autora do “Nem louca, nem coitadinha, nem tão corajosa assim”, a jornalista mineira fala em livro recém-lançado e na internet sobre as delícias e os cuidados de viajar sozinha. Por Larissa Saram

Mariana em Valle Nevado, no Chile

Estamos em 2024 e mulheres que viajam sozinhas ainda são motivo de julgamentos de todo tipo. Uma busca rapidinha no Instagram ou no Tik Tok dão uma mostra de como o machismo ainda condena aquelas que cruzam cidades e países apenas na própria companhia: são muitos os comentários, ora  raivosos, ora espantados.

A jornalista mineira Mariana Bueno sabe muito bem disso. Desde 2015 ela alimenta o blog “Mariana Viaja” ​​ com dicas e relatos sobre atravessar o país e o mundo sem ninguém do lado . “Percebi que as pessoas tinham mais interesse em saber como tinha sido a experiência sozinha do que sobre as viagens em si. Comecei a focar nisso”, contou durante a nossa conversa por WhatsApp para o “Mulheres e a Cidade”.

Os textos do blog, que tem também crônicas, estão reunidos em Nem louca, nem coitadinha, nem tão corajosa assim”. Lançado este ano de forma independente, o título vai ganhar hoje, 4/07, uma apresentação oficial em São Paulo, n’A Feira do Livro.

No nosso papo a seguir, além de contar sobre o novo livro (este é o segundo escrito por Mariana), a jornalista detalhou suas experiências de migrante e falou sobre o prazer em viajar sozinha.


LARISSA SARAM: Você está lançando “Nem louca, nem coitadinha, nem tão corajosa assim”, que já no título reúne alguns julgamentos sobre mulheres que viajam sozinhas. Qual foi o ponto de partida para escrevê-lo?

Mariana Bueno: Sempre escrevi muito e o blog foi a primeira experiência de compartilhar escritos mais pessoais. Vi que tinha uma boa resposta das pessoas e, a partir disso, veio a vontade de juntar textos sobre viajar sozinha. Fui reunindo o que já tinha publicado, reescrevendo, pegando trechos de outros pra fazer novos, buscando pedaços do que tenho rascunhado nos blocos de nota do computador e do celular. E fui organizando de uma forma que fizesse sentido. Dividi em três partes: a primeira, com textos sobre as questões femininas; a segunda, sobre destinos, e a terceira com dicas práticas. O título chama a atenção porque são julgamentos que toda mulher já ouviu. É um tema que fala muito de mulher pra mulher, mas não é um livro só para mulheres, acho importantíssimo que os homens participem, entendam, estejam de fatos mobilizados nas mudanças pelas quais lutamos. É um livro que vai muito além das viagens, que propõe pensar sobre todas essas questões de gênero. Publiquei de forma independente, fiz uma pré-venda para levantar a grana da primeira tiragem. Foi bom ter esse público que já acompanha meu conteúdo na internet, porque essas pessoas ajudaram e foram fundamentais pra que o livro se concretizasse.

Mulher que toma uma decisão
por si mesma, ainda mais quando
envolve prazer/lazer, tem um
peso de julgamento

LS: Quando viajar sozinha se tornou um assunto importante pra você?
MB: É engraçado porque eu já tinha me mudado de cidade e de estado, mas não pensava em viajar sozinha. Até que aconteceu de tirar férias em um período que ninguém conseguiria ir comigo. A gente tem isso de que pra se divertir precisa ter mais gente junto (e é bom mesmo), mas a própria companhia também pode ser incrível. Quando comentei que não teria com quem viajar, alguém me disse “fica aqui, você pode ir à praia, a uma exposição”. E eu pensei “mas se vou ter de fazer tudo isso sozinha, por que não fazer em outro lugar?” Veio a sensação da praticidade, de não precisar esperar ninguém pra decidir as coisas. Isso sempre me deu uma angústia, muitas vezes deixei de sair ou fazer algo que queria porque as pessoas não se decidiam. Foi assim que comecei a ir sozinha. Isso foi em 2013. Escrevia durante as viagens como forma de registrar as memórias e uns anos depois, em 2015, criei o blog. Foi aí que percebi que as pessoas tinham mais interesse em saber se eu tinha ido sozinha, como eu tinha ido sozinha, como tinha sido a experiência sozinha, do que nas viagens em si. Algumas com espanto, outras com admiração, algumas horrorizadas. Comecei a focar nisso. Paralelamente estávamos vivendo uma nova onda de um movimento de fortalecimento de mulheres. Eram assuntos que se conectavam. Por que o estranhamento quando uma mulher viaja sozinha? Não é só sobre viagem, é sobre decisão. Mulher que toma uma decisão por si mesma, ainda mais quando envolve prazer/lazer, tem um peso de julgamento. Minha mudança de estado, por exemplo, tinha a “justificativa” que era a trabalho. Mas escolher fazer, fazer porque quer, a sociedade ainda olha muito torto.

Cânions do Xingó – Rio São Francisco (SE)

LS: Quando a gente fala sobre mulheres que viajam sozinhas, os problemas com a nossa segurança sempre surgem como um impedimento. Qual é a sua opinião sobre isso?
MB: Tem o fato de ser mesmo mais perigoso para as mulheres, mas isso não pode ser uma afirmação, tem que ser um questionamento. Por que os lugares não são seguros? Por que a gente cresce aprendendo a ser insegura? Não é simplesmente uma questão de segurança pública, é uma questão de misoginia. Sempre gostei de me hospedar em regiões com mais movimento porque me sentia segura. Mas aí eu comecei a ir além e a pontuar o fato das cidades serem pensadas e construídas de homens/para homens. Vejo muitos conteúdos sobre viajar sozinha que só falam dos lugares, postam fotos bonitas. Não consigo falar sobre isso sem pensar em questões de gênero, em questões estruturais. Não quero que viajar sozinha precise ser um assunto, uma bandeira a ser levantada. Ainda é porque o mundo é hostil. É uma mudança lenta, que talvez eu mesma não veja, mas é uma mudança que a gente tem que fazer. Não adianta esperar que o mundo mude. É ocupar nossos espaços, desenvolver nossa autonomia, entender que a gente pode buscar formas de driblar esses perigos, buscar formas mais seguras, porque isso é necessário também. Mas não deixar de ir ou de fazer. Embora o viajar seja meu ponto de partida para que escrevo, percebi que meu conteúdo é muito mais do que só sobre viagens.

LS: Qual é o melhor jeito de conhecer uma cidade?
MB: Acho que não existe jeito melhor do que andando. Porque se você pega um transporte, conhece um ponto turístico, depois outro. Se você anda, conhece a cidade, vê as pessoas, como se vestem, como falam, como são os comércios, o estilo de vida mesmo. Evito bairros pouco movimentados e andar à noite. Cuidados que a gente precisa ter por ser mulher. Então sou daquelas que acorda cedo, anda quilômetros e quilômetros o dia todo, chega cansada e dorme.

São Paulo

LS: Sente que há diferença entre caminhar por uma metrópole e uma cidade menor?
MB: Em cidades menores ou mais distantes de capitais, uma mulher sozinha é um ser estranho. As pessoas percebem que você é “diferente”, que não é dali. Isso me desperta um medo. Não estou dizendo que há perigo, que algo seria feito, mas o medo de ser mulher é exatamente isso, é esse medo que vem antes, que toma conta da gente mesmo que não haja nada de concreto. As pessoas perguntam muito pelo “meu marido”, se ele não quis fazer o passeio, se deixou que eu fizesse (!) É muito cultural, né!? É claro que nas cidades grandes há isso também e talvez até mais, mas, com o dia a dia corrido, o movimento maior, não é algo que fica evidente. Então é paradoxal, porque as cidades grandes são mais perigosas, as pequenas mais tranquilas, mas é uma tranquilidade que me dá medo, de andar por uma rua sem ninguém – assim como andar por uma rua com bares só com homens. A gente tem de estar sempre observando qual caminho é o melhor, pra conseguir passar se sentindo segura ou menos insegura. Eu particularmente amaria passar desapercebida. Essa invisibilidade que os homens tem, que ninguém nota, ninguém liga, ninguém questiona, é a liberdade.

LS: O que faz a relação com uma cidade estrangeira se tornar inesquecível?
MB: 
Por mais que os lugares sejam incríveis, sozinhos eles não são nada, as cidades são o que despertam na gente. E é por isso que cada um sente de uma forma. Escrevo sobre viagens e tenho pavor quando vejo conteúdos que dizem “lugares bons”, “lugares não bons”, porque isso é de cada um. Acho que é essa bagagem interna, não sei se só do lugar onde nascemos ou crescemos, mas de personalidade também. E isso leva às conexões com as pessoas. Então uma viagem é sempre mais que uma viagem, um lugar é sempre mais que um lugar.

LS: Você é uma mulher mineira morando no litoral norte de São Paulo. Como foi esse caminho?
MB: Sou de uma cidade pequena do interior chamada Araújos, que tem menos de 10 mil habitantes hoje – na minha infância tinha menos ainda. E, como acontece com a maioria das pessoas que tem vontade de estudar, é preciso sair da cidade. Fiz faculdade de jornalismo em Belo Horizonte e, anos depois, já formada e trabalhando, conheci o Rio de Janeiro, que era a cidade dos sonhos da minha infância, que eu via na TV. Visitei algumas vezes até que, por uma dessas coisas do destino, recebi uma proposta de trabalho e não pensei duas vezes. Fui com a cara e a coragem, sozinha. E foi um outro mundo! Mesmo já tendo morado em BH, o Rio é muito diferente, ali eu me expandi em todos os sentidos. Por mais que seja uma cidade imensa e plural, tem uma simplicidade de andar de chinelo, de sair de short, de trocar uma ideia com as pessoas na rua. Eu gostava disso. Só que num dado momento, pesou. Por todo o histórico que a cidade tem, valores exorbitantes, eu me sentia presa, não estava num momento bom e era hora de sair. Como já trabalhava de forma remota, tinha essa flexibilidade de poder me mudar para outro lugar. Hoje moro em Caraguatatuba, que é uma cidade que tem a praia, que tem esse lado mais despojado que eu gosto, mas ao mesmo tempo tem uma boa estrutura. Acho que foi uma escolha que juntou o lado bom de tudo isso que já vivi.

LS: E como é a sua relação com o lugar onde mora hoje? Sente alguma questão da comunidade por não ter nascido lá, por exemplo?
MB: Ainda é uma fase de conhecer a cidade e me reconhecer nela. Adaptação nunca é tão simples, só fui me dar conta disso tempos depois. Na minha cabeça, eu tinha que gostar de tudo, achar tudo perfeito, porque, afinal, quis me mudar. Era como se ao admitir que estava difícil, estivesse dizendo que não queria mais continuar. E eu queria. Hoje estou me permitindo viver esse processo: saber que sou uma pessoa de fora, que não tive a mesma criação, que muitas coisas são diferentes e que isso tem impacto na adaptação. A maioria das pessoas que tenho contato aqui são de outras cidades. Tem muito isso de pessoas que vieram de São Paulo pra morar na praia; do interior, que já vinham de veraneio e resolveram ficar. Tem muita gente “de fora”, acaba gerando conexão. Tive uma infância livre, simples, muito vida de interior mesmo, de uma cidade tranquila, sem violência, e de uma forma meio brusca, pra saciar meus desejos adolescentes, me integrei a uma cidade grande sem questionar nada. E ficou tanto buraco (risos)! Fui uma pessoa “sem lugar” durante um tempo e na minha cabeça eu era “do mundo”. Talvez seja mesmo. Abracei a liberdade, gosto dela, mas gosto das raízes também. Acho que só estando em conexão comigo mesma é que vou conseguir uma relação melhor com o lugar onde moro.

Fui uma pessoa “sem lugar” durante
um tempo e na minha cabeça eu
era “do mundo”. Talvez seja mesmo.
Abracei a liberdade, gosto dela,
mas gosto das raízes também.
Acho que só estando em conexão
comigo mesma é que vou
conseguir uma relação melhor
com o lugar onde moro

Mariana em Paris

LS: Você acredita que não importa onde esteja morando, sempre carregamos um pedaço do lugar onde nascemos? Sempre vai ter um pedaço de Araújos com você?
MB: Não acho que necessariamente tenho um pedaço da cidade em mim. Mas tem algo em mim que vem dessa origem. Mesmo sendo a mulher da cidade grande (porque de alguma forma sou também), eu ainda sou uma menina do interior que acha tudo lindo, incrível. Eu me deslumbro fácil, vejo beleza nas coisas todas e acho que muita gente que cresceu em cidade grande, que teve uma vida com acesso a mais coisas, que viajou desde cedo, não tem tanto. Não acho que obrigatoriamente uma pessoa precisa ter laços afetivos com o lugar de origem, rompimentos muitas vezes são necessários. Eu mesma nunca pensei em voltar, não tenho uma identificação, me sinto estranha quando estou lá, deslocada. Mas o que a gente é, é também um pouco o lugar de onde a gente veio.

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