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entrevista com Thaline Rocha

“Tenho um sentimento de pertencimento do meu bairro: o que era um espaço de travessia, agora é meu lugar”

A urbanista mostra no curta “Com quantas barreiras se constrói um território?” como a obra paralisada do Rodoanel destruiu famílias no Sítio Botuquara, de Perus. Por Graziela Salomão

Foto: Arquivo Pessoal

Depois de 50 anos morando na mesma casa, em que cuidava do jardim com todo zelo e trocava a cor da fachada anualmente, Nilza Moreira Nunes precisou deixar tudo que construiu para trás e refazer a vida nos 45 metros quadrados de um apartamento no 5o. andar de um prédio sem elevador em outro bairro. Hoje, aos 82 anos, com a saúde debilitada, ela não consegue descer as escadas para ver o jardim de onde mora.

A história de Nilza se soma a de mais 15 famílias que foram desapropriadas no bairro Sitio Botuquara, em Perus, na zona Noroeste de São Paulo, para a construção do trecho Norte do Rodoanel em 2013. A dor de abandonar o lar construído depois de tanto esforço, que poderia ser dimunuída pela promessa de melhorias na região, parece ter sido em vão: desde 2018, a obra está paralisada. No lugar, abandono e retratos de uma cidade que deixa seus cidadãos isolados e largados à própria sorte. A concessionária Via Appia, responsável pela obra, anunciou a retomada dos trabalhos no último dia 25 de abril.

A arquiteta e urbanista Thaline Nunes Rocha, de 25 anos, é neta de Nilza, cresceu no Botuquara, acompanhou o sofrimento da avó, e só entendeu que poderia fazer alguma coisa para aquela realidade quando ultrapassou as fronteiras do bairro para estudar Arquitetura e Urbanismo. Quando percebeu que se apropriar da própria história e da de seu território seriam ferramentas de transformação para ela e para a comunidade, Thaline mergulhou em pesquisas que resultaram no documentário “Com quantas barreiras se constrói um território?”. Roteirizado por ela e produzido pelo coletivo Filmes Sem Nome, o curta foi lançado em março deste ano com apoio do Programa VAI da Secretaria Municipal de Cultura.

A primeira exibição não poderia ser em um lugar diferente: embaixo de um viaduto da obra do Rodoanel na região. “Minha avó morava ali. Hoje aquele lugar que está abandonado há 8 anos se transformou em cenário de estupro, sequestro, roubo, morte. Não tinha como não ser naquele espaço”, conta Thaline, em entrevista para o Mulheres e a Cidade. “No projeto de conclusão de curso que originou o documentário eu coloco como proposta ocupar as áreas remanescentes do Rodoanel com as necessidades do bairro. Então promover cultura, ter uma biblioteca, é cumprir essa estratégia”. Um telão de 16 metros de altura foi pendurado nos pilares do viaduto para que toda a comunidade pudesse participar. “Foi uma festa para o bairro e uma celebração para o território acima de tudo. Conseguimos ressignificar e fazer resistência em um lugar que é uma barreira. É uma outra perspectiva de não só falar sobre violência, mas sobre esperança pro futuro”, conta Thaline. 

Foto: Reprodução

Graziela Salomão: Como é sua relação com o seu bairro? E por que filmar sobre ele?
Thaline Nunes Rocha: Morei a vida toda no Botuquara, bairro que fica na Serra da Cantareira. Sempre tive muita autonomia, brincava na rua, no meio do mato, era outra vivência. Lembro de uma vez perguntar para o meu avô porque todo mundo falava que São Paulo é tão grande. Não tinha noção que existia mais do que aquilo. Fui realmente entender o lugar do Botuquara na cidade quando comecei minha faculdade. Tinha que acordar muito cedo, eram duas horas para ir e duas para voltar. Pegava trem, ônibus, metrô, e quando chegava na faculdade tinha uma galera que só tinha demorado 15 minutos. Enquanto eu estava toda suada e cansada, eles estavam descansados. Foi aí que comecei a estudar o organismo da cidade e tive algumas respostas para minhas perguntas. Quando peguei o mapa da vulnerabilidade social, vi que onde eu estava tinha esse recorte e como isso se traduzia na minha vida. O documentário surgiu da minha pesquisa acadêmica de como dar nome a esses incômodos. Para entender como a questão de regularidade fundiária afetava, mapeei todas as casas do bairro e fiz um mega estudo. O projeto foi evoluindo de forma natural, ganhei um prêmio do Conselho de Arquitetura por causa dele, fiz a inscrição no Edital e consegui que ele virasse um documentário. Há um ano me mudei, mas ainda continuo em Perus porque é minha área de atuação. Moro sozinha mais próxima da estação porque era muito difícil, mas participo do Conselho Participativo. É um misto de sensações porque aqui é o lugar da minha vida, onde quero construir minha casa de arquiteta, mas estar dentro do bairro é como se nunca pudesse descansar. Tentei estabelecer essa distância um pouco mais segura para não adoecer e continuar exercendo todas as possibilidades, mas foi uma decisão difícil.

GS: Você dirige e aparece em algumas cenas do documentário, né?
TNR: Esse é um filme muito pessoal, por isso fico atrás das câmeras, mas também apareço. A cena da terra que cai no meu rosto traz o sentimento de sufocamento que sempre tive. Me sentia muito sufocada dentro do bairro porque era como se todas as barreiras estivessem em cima de mim.

Apresentação do documentário para os moradores do Sítio Botuquara / Foto: Divulgação

GS: No documentário você mostra como a construção do Rodoanel mudou a região e como afetou famílias com a sua. Qual foi o impacto disso?
TNR: A desapropriação da casa da minha avó para a construção do Rodoanel aconteceu em 2013, quando eu tinha uns 14 anos. Não tenho muitas memórias desse processo porque foi tudo muito rápido e violento. Em um fim de semana a gente estava almoçando todo mundo junto e, no outro, minha avó estava morando na minha casa procurando um apartamento para comprar. Lembro do tempo que ela estava em casa e ficava muito quieta, evitava sair para não ter que passar na frente da antiga casa dela. Quando tudo foi demolido, não fui assistir. Só escutava os barulhos do trator, dos estrondos. Passei um dia em frente e tinha muita gente em cima dos entulhos, pegando porta, madeira, ferro. Depois as coisas aconteceram rapidamente: tocava uma sirene e você não podia estar na rua porque eles iam estourar pedra, o barulho era horrível e o cenário de destruição. Só fui ter consciência do quão dolorido tinha sido para minha avó depois. Infelizmente, na minha família, a gente não tem o hábito de falar sobre o que está sentindo. Só esse ano, quando fui apresentar o documentário, ela me contou que uma vez foi no mercado e passou na frente da casa dela que já estava toda destruída. Ela sentou lá e chorou por horas. Cada dia que passa entendo mais sobre esses impactos tanto para a minha família quanto para o coletivo porque é um negócio que atravessa a cidade inteira.

GS: Você viu sua avó adoecer com a destruição da casa dela. Como ela está hoje?
TNR: Minha avó fez 82 anos. Sempre foi ativa, trabalhou muito. Todo fim de ano pintava a casa de uma cor diferente. Parecia uma casinha de boneca, com um jardim lindo. Era o ponto de encontro da família e dos vizinhos porque foi uma das primeiras moradoras do bairro. Viveu lá desde que chegou de Minas Gerais com meu avô que trabalhava nas pedreiras de Perus. Aquilo era tudo pra ela. A possibilidade do Rodoanel passar por ali sempre existiu, mas quando ele chegou foi tudo muito depressa. Ela estava com tanto medo de não ter uma casa que escolheu a primeira possibilidade depois da desapropriação. Naquela época ainda estava bem fisicamente e comprou um apartamento no 5o. andar de um prédio sem elevador. Hoje, está debilitada e não consegue sair de casa. Com o tempo foi aparecendo essa depressão não dita. Fiz duas entrevistas com ela para o documentário. Na primeira, ela traz uma narrativa de vontade de justiça. Fala que foi tirada de casa sem pagarem a quantia certa, que destruiram a vida dela para a obra ficar parada. Na segunda, em um intervalo de 9 meses e mais debilitada, ela tenta mostrar que não está mal. A idade traz um pouco disso, mas tenho certeza que se ainda estivesse na casa dela, ela seria uma outra mulher. 

“Hoje defendo que o urbanismo colaborativo e social é muito importante. As pessoas das periferias precisam olhar seus espaços de forma propositiva. Estamos só replicando um modelo de hegemonia do poder.”

GS: E por que decidiu investigar sobre essa construção?
TNR: Sempre gostei de arquitetura. Acho que puxei isso do meu pai porque a gente construiu a nossa casa. Ficava com ele pegando tijolo, pintando parede, colocando piso. Sei fazer essas coisas desde criança e acho que ele foi projetando um pouco o sonho dele em mim. Passei na faculdade com o ProUni, foi aquela emoção da família, mas eu não sabia desenhar nada. Quando comecei as aulas de Urbanismo entendi que era muito mais do que só projetar, era uma visão mais ampla sobre como se insere em outros lugares e como eles são reflexos de muitas coisas de política, da própria comunidade. Lembro de falar para um professor que precisava fazer alguma coisa sobre o meu bairro porque ele não existia. A ideia foi se construindo para uma proposta de um plano de desenvolvimento local, de geração de economia e moradia. Quando fui estagiar no Instituto [A Cidade Precisa de Você] percebi que nós, estudantes periféricos, não temos a oportunidade de atuar sobre nossos próprios espaços. Uma vez me falaram que era inveja. Claro que era. Eles tinham viagem para Europa, não pegavam trem, metrô, não passavam duas horas para chegar na faculdade, e ainda vinham no meu território achar que podiam fazer o que quisessem? Com o tempo fui amadurecendo essa essa visão e hoje defendo que o urbanismo colaborativo e social é muito importante. As pessoas das periferias precisam olhar seus espaços de forma propositiva. Estamos só replicando um modelo de hegemonia do poder. Foi aí que pensei que precisava pegar investimento para fazer pelos meus. Meu propósito é trabalhar pelo Botuquara. Quero poder criticar toda essa estrutura do Urbanismo através do nosso território. Minha atuação foi se transformando nesse lugar de ativismo e empoderamento da galera periférica. 

Thaline e a avó Nilza | Foto: Arquivo Pessoal

GS: Qual é a missão do seu documentário? 
TNR: O documentário tem vários objetivos. Queria levantar essa discussão do espaço, relacionado ao Rodoanel, e do lamento social dentro da maior metrópole da América Latina. Quero puxar as pessoas a serem propositivas, de terem autonomia sobre os próprios espaços. Precisamos de investimento local sem interceptadores. Estou muito feliz de conseguir já executar algumas coisas dentro do Conselho Participativo [Municipal Perus e Anhanguera]. Consegui fazer uma articulação para chegar 5 milhões de reais para a obra de redução de risco no Botuquara. Isso mostra que eu não tô maluca. (risos) O córrego passando por baixo da casa das pessoas é um risco de deslizamento grande. Estou tentando hackear esses espaços e fazer o que é possível.

Trailer do documentário “Com quantas barreiras se constrói um território?”

GS: E como é ser mulher nesse espaço?
TNR: É você ser atravessada e estar do avesso o tempo inteiro, ser deslegitimada e invisibilizada. Tem um momento que o medo precisa ser transformado em alguma coisa senão vira revolta e te adoece. Se você conseguir fazer alguma coisa com ele, pode ser potencializador. Hoje em dia, de forma consciente, tento trabalhar com mulheres aqui em Perus, formar uma rede que não trabalhe apenas com a questão do desenvolvimento urbano, mas que esteja em várias outros lugares como educação, saúde, cultura. Queremos potencializar nosso trabalho, mas também nos acolher.

GS: Como foi sair do seu bairro e descobrir que a cidade tinha tanto para te oferecer?
TNR: Quando comecei a ter um pouco mais de autonomia nesse caminhar, tinha essa curiosidade de ir mapeando a cidade, mas ao mesmo tempo, sentia muita vergonha porque entendi que aquele espaço não era para mim. Ao mesmo tempo, quando estava no meu território, era banida de tantas coisas, não tinha acesso. Só fui entender essas vulnerabilidades me apropriando desses sentimentos feios que às vezes aparecem na gente. Agora sou completamente bairrista. Adoro tudo que tem aqui. Tenho um sentimento de pertencimento do meu bairro: o que era um espaço de travessia, agora é meu lugar. 

“A memória dentro do Botuquara é uma questão de resistência, de falar que lá existiam famílias e histórias. Trabalhar a memória é trabalhar diretamente com um lugar de resistência.”

GS: No final do documentário você fala como a memória também é uma ferramenta de poder. Por que?
TNR: A memória do bairro tem um lugar não apenas simbólico. Se não está escrito em livro nenhum, se não existe em mapa, é um apagamento e é muito violento. A memória dentro do Botuquara é uma questão de resistência, de falar que lá existiam famílias e histórias. Trabalhar a memória é trabalhar diretamente com um lugar de resistência. Quando a gente fala sobre o apagamento da memória, tem a ver também com o apagamento da paisagem. É como se o Rodoanel criasse uma barreira e uma fenda temporal porque é um símbolo de progresso numa escala metropolitana, mas impede o progresso do bairro. Quero transformar essa situação que foi tão difícil em algo de potência.

Foto: Reprodução

GS: Qual é a cidade dos seus sonhos ou a que você quer construir? 
TNR: Acho que estamos enxugando tanto gelo atualmente que é difícil ter uma perspectiva positiva a longo prazo. Gostaria muito que a periferia conseguisse ter autonomia sobre os seus próprios territórios.

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