Lifestyle

entrevista com Thais Haliski

“Fazemos Carnaval todos os anos e sabemos quais são as dores de cada foliã”

Coordenadora da Comissão Feminina de Carnaval de rua de São Paulo, ela mostra que o Carnaval é das mulheres e ocupar as ruas durante a festa é um ato de resistência. Por Graziela Salomão

Tia Ciata, Dona Ivone Lara, Chiquinha Gonzaga são mulheres que deixaram um legado de cultura, história e presença feminina nas ruas, nas cidades e, principalmente, na história da música em uma das festas mais populares do país: o Carnaval. Se hoje você, assim como eu, já está de olho na programação dos blocos para aproveitar nos próximos dias é porque mulheres como elas venceram preconceitos e não desistiram a cada “não pode” que ouviram. Assim como Thais Haliski, co-fundadora e uma das coordenadoras da Comissão Feminina do Carnaval de Rua de São Paulo, que também participa de blocos famosos como o “Confraria do Pasmado” e da “Cerca Frango“. A paixão pelo Carnaval que vem da infância é, hoje, passada para a filha que, desde pequena, vai aos ensaios e cortejos dos blocos. “Este ano ela irá tocar comigo pela primeira vez. Será emocionante!”, conta Thais em conversa com o “Mulheres e a Cidade”, da Púrpura Mag.

O Carnaval de rua da maior metrópole do país atinge números que fazem jus ao seu tamanho. Só em 2023, reuniu mais de 15 milhões pessoas. Para esse ano, segundo a Prefeitura, estão programados 530 desfiles, o que representa 16% a mais que no ano passado, o que deve levar ainda mais foliões às ruas, batendo novo recorde. Mas nem sempre foi assim e São Paulo já foi considerada o “túmulo do samba”, nas palavras de Vinícius de Moraes, quando todo mundo fugia da cidade. Muita coisa mudou, o jogo virou e, hoje, tem até uma disputa supersaudável entre cariocas e paulistanos em busca do título de maior Carnaval do país. Mas o tamanho da festa é proporcional aos problemas que se enfrenta, em especial quando se fala de segurança para mulheres. É por issso que iniciativas como a Comissão Feminina são essenciais. “As ações oferecidas pelo poder público são, de maneira geral, ineficientes ou já estão muito aquém do tamanho que o Carnaval de São Paulo tomou”, explica. 

Isso não impede – e não deve impedir jamais! – que Thais, você que lê o “Mulheres e a Cidade” e eu estejamos nas ruas. Porque o Carnaval é nosso e ocupar as ruas é resistir. “Nossa intenção é persistir até que sejamos respeitadas”, afirma. Antes de vestir a fantasia e ir para a rua aproveitar, separe um tempinho para acompanhar nosso papo com a Thais e se inspirar ainda mais para curtir este Carnaval.

Graziela Salomão: Como foi seu encontro com o Carnaval de rua?
Thais Haliski: Sempre gostei de Carnaval desde pequena. Nossa família ia aos bailes do clube em que éramos sócios. Depois de adulta, participava de blocos de uma maneira mais tímida. Foi nos últimos 10 anos que me envolvi ativamente, pois um grupo de amigos próximos criou o bloco “Acadêmicos da Cerca Frango”. No início, registrava o bloco porque estava começando a fotografar, mas com o tempo quis entrar para a bateria. Entrei nas oficinas do bloco “Confraria do Pasmado” em 2017 e, naquele mesmo ano, já toquei em ambas as baterias. Minha filha era bem pequena na época e eu a levava comigo. Ela brincava, achava legal, mas em algum momento dormia. De lá pra cá, seguimos juntas nos ensaios e cortejos. Este ano ela irá tocar comigo pela primeira vez. Será emocionante! Muitos amigos acompanharam o crescimento dela e, certamente, vou me emocionar!

GS: A sensação de insegurança sempre foi uma constante para você ao curtir o Carnaval?
TH: A insegurança existe em qualquer evento. Mulheres sentem medo de estarem na rua a qualquer horário do dia, em qualquer local. Faz parte do nosso cotidiano. No Carnaval existe uma atenção maior, pois o consumo de álcool sem moderação incita algumas pessoas a praticarem, em maior quantidade, atos que vão desde importunação sexual até casos mais graves como estupro. E o Carnaval não seria uma exceção. Nesta época estamos mais expostas por conta de roupa, locais mais movimentados, dias e dias de festa. Eu, particularmente, sinto insegurança, mas também acredito que não podemos nos privar de festejar a vida e o Carnaval porque pessoas não respeitam as mulheres. Sigo firme e forte acreditando que sempre será melhor resistir.

GS: Você é co-fundadora da Comissão Feminina do Carnaval de Rua de São Paulo. Por que criaram essa comissão? E por que as ações municipais não dão conta de proteger as mulheres no Carnaval?
TH: A Comissão foi criada com o intuito de reunir organizadoras de blocos que não tinham representatividade e que também não sabiam como poderiam construir esse espaço. Iniciamos nosso trabalho em 2019 e, de lá pra cá, aprendemos muito, ajudamos pessoas fazendo a ponte entre as informações que são definidas para planejamento e organização do Carnaval, além das pautas e pleitos naturais da festa como estrutura adequada, interlocução com as secretarias, campanhas contra o assédio, distribuição de água, pontos de acolhimento para mulheres espalhados pela cidade, apoio e fomento aos blocos. As ações oferecidas pelo poder público são, de maneira geral, ineficientes ou já estão muito aquém do tamanho que o Carnaval de São Paulo tornou. Tentamos fazer essa ponte, mas a comunicação ou é ruim, ou as decisões são tomadas muito em cima da festa. Não se tem uma preparação adequada com a expertise que só os blocos conseguem ter. Fazemos Carnaval todos os anos e sabemos quais as dores de cada foliã. Esse conhecimento específico poderia ser melhor explorado.

Algumas das integrantes da Comissão Feminina do Carnaval de Rua de São Paulo | Foto: Reprodução Instagram

GS: A presença feminina sempre foi apagada dos registros históricos da criação e consolidação do Carnaval. Entre os séculos XVI e XVII, nem mesmo nas ruas poderíamos curtir a festa. Mas sempre estivemos lá, desempenhando diferentes papéis. Como você vê, hoje, tantos blocos sendo organizados e puxados por mulheres? E o que ainda falta para que isso seja igual como é para os homens?
TH: As mulheres ocupam, cada vez mais, espaços de decisões. No Carnaval de rua temos o crescimento da presença de mulheres em todos os lugares, sejam em baterias, mestras, cantoras, organizadoras e tantas outras funções. Ainda não estamos em quantidade igual, pois ainda existe resistência nesse sentido em blocos. Eles, aos poucos, vão entendendo que as mulheres podem ocupar lugares de lideranças nesse caldeirão que é o Carnaval. É um trabalho de formiguinha em que a resistência e a persistência são primordiais para que, com o tempo, isso se consolide como uma coisa natural. Queremos que daqui alguns anos isso não seja um assunto, mas o meio comum.

GS: As passistas transformaram a objetificação de seus corpos em uma forma de empoderamento feminino. Hoje, nas ruas de grandes cidades como São Paulo, trazemos muito disso ao usarmos nossas fantasias da forma que desejamos, né? Como essa expressão de liberdade do Carnaval pode ser um ensinamento para os outros dias do ano em que, nem sempre, nossos corpos não são aceitos no espaço público? 
TH: O corpo das mulheres sempre gera discussões quando falamos sobre objetificação, empoderamento, valorização do feminino. O importante aqui é que cada mulher pode fazer o que quiser com seu corpo. Se ela vai com pouca roupa ou não, isso não está em pauta. É um direito estabelecido e precisa ser respeitado. O empoderamento não vem se a roupa é longa ou curta, mas do fato que precisamos chegar em um patamar onde isso não é uma questão. Cada mulher pode e deve se mostrar da forma que bem entender e não pode, de maneira alguma, ser julgada ou menosprezada por isso.

“Não podemos nos privar de festejar a vida e o Carnaval porque pessoas não respeitam as mulheres”

GS:  Carnaval é um sentimento que passa de geração para geração. Como passar também essa experiência de podermos existir nas ruas com tranquilidade, deixando esse legado para as futuras gerações?
TH: Minha filha, que hoje tem 16 anos, me acompanha no Carnaval desde o seis. Nessa época, me separei e me tornei mãe solo. A maior parte do tempo ela está comigo. Não havia outra forma de ter a oportunidade de viver o Carnaval. Quando decidi participar da festa, existia a dúvida se não a colocaria em risco. Por isso começamos nesse bloco dos amigos porque, ao mesmo tempo que eu estava curtindo, outras pessoas também estavam comigo nesse cuidado. Rede de apoio nesse caso foi fundamental. Alguns amigos chegaram a levá-la embora do bloco para descansar em suas casas para que eu pudesse terminar meu cortejo. Tive a oportunidade de apresentar o que é a rua, o que é colaboração, perrengues, sol, chuva, calor, frio, fome, mas carregado de festa, risadas, pessoas queridas que passavam Valentina de ombro em ombro para que ela pudesse ver a multidão. O espírito do Carnaval foi semeado ali. A cultura foi vivida desde criança para que ela leve essa experiência e lembranças para sempre em sua memória. 

GS: Como o Carnaval e a cidade se conectam? E como esses dois juntos te atravessam e te impactam?
TH: O Carnaval é presente em quem organiza a festa durante o ano todo. São comunidades espalhadas pela cidade que, entre um intervalo e outro, continuam realizando encontros, aniversários, festas, fazendo conexões, indicando trabalhos, desenvolvendo projetos das mais diversas áreas ligadas à folia ou não. É um universo de possibilidades de uma rede que cresce e se desenvolve. Pessoas vão se conhecendo, criam blocos novos com outras temáticas, e assim vai se multiplicando. Cada ano surgem novas amizades e conexões, mas que tem como pano de fundo o próprio Carnaval. É realmente incrível participar disso.

GS: São Paulo não tinha essa expressividade no Carnaval de rua como tem hoje. Qual a importância de ocuparmos a cidade da forma que temos ocupado durante esses dias? E o que falta ainda para melhoramos em todos os pontos – incluindo segurança principalmente para os corpos femininos? 
TH: São Paulo era uma cidade que ficava vazia nessa época. Era tradição viajar para a praia ou para outra capital com Carnaval mais organizado. Hoje temos quase 600 blocos inscritos e diversos modelos de Carnaval de acordo com as regiões. Muito ainda precisa ser feito para entender como tudo isso se dá, mas uma questão é unanimidade: a segurança é falha em todas as regiões. Ser mulher na maior metrópole do país é muito difícil, ainda mais no Carnaval. Políticas públicas precisam ser pensadas para o nosso bem estar e da população em geral. O Brasil é o país que mais mata LGBTQIA+ no mundo. Ocupar a rua nessas condições é ato para corajosas! Nossa intenção é persistir até que sejamos respeitadas.

GS: Como você passou a enxergar as ruas da cidade depois de ter se envolvido de forma tão profunda com ela, comandando blocos e comissão? 
TH: Depois de 10 anos envolvida com o Carnaval de rua é possível ter uma visão mais crítica dele. Tenho ideia de como as forças se chocam e como podemos tentar pressionar o poder público a dar as respostas de que precisamos. É difícil e duro. Cansa muito e às vezes temos vontade de desistir. Mais aí vem outro Carnaval e tudo se renova.

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