Comportamento

entrevista com Juliane C. Borsa

“A solidão pode ser dolorosa, mas também é um convite. Quando mulheres reconhecem esse sentimento, transformam-no em movimento”

Psicóloga e terapeuta cognitivo-comportamental de mulheres fala sobre como as grandes cidades são geradoras e também antídoto para a solidão feminina. Por Larissa Saram

Eu tenho certeza de que você já esbarrou em algum post no Instagram sobre saúde social – lá mesmo no perfil do Mulheres e a Cidade a gente tem falado muito sobre isso desde o começo deste ano. Foi logo depois do SXSW 2025, em Austin, que o tema ganhou força e se espalhou internet afora. É que no festival, a Kasley Killam, autora de The Art and Science of Connection, abriu o evento com uma palestra poderosa sobre por que o modo como nos conectamos precisa ser reconhecido como um pilar essencial para o bem-estar coletivo.

Pra gente, ficou impossível não mergulhar fundo nesse assunto porque não dá para falar em saúde social sem falar em cidade. Afinal, é no espaço público que a vida comum acontece. É na praça perto de casa, no transporte que a gente pega todo dia, na festa do bairro que criamos laços, nos sentimos parte de algo maior e somos lembradas de que não estamos sozinhas. 

Foi nesse contexto que decidimos criar em parceria com a 65|10 o G.P.S. – Guia Para Socializar, nossa pesquisa inédita sobre o poder de encontrar a própria turma no combate à solidão e ao isolamento. Para construir o material, contamos com depoimentos de mulheres de todo Brasil e a dra. Juliane Borsa foi uma delas. Psicóloga, terapeuta cognitivo-comportamental de mulheres, mestra em Psicologia Clínica (PUCRS), doutora e pós-doutora em Psicologia (UFRGS), ela é uma das poucas profissionais no Brasil que estuda saúde mental das mulheres em contextos urbanos.

Na entrevista a seguir (parte dela está no G.P.S.), a dra. Juliane fala sobre como começou a trabalhar com esse recorte de gênero, explica o que uma conexão humana pode oferecer às mulheres, e reflete sobre o papel dos encontros coletivos na construção de esperança e sentido de futuro. O papo está longo, mas a gente garante que essa imersão vai valer a pena. Pega um café e vem!

Larissa Saram: De que forma a sua história de vida te levou a pesquisar as condições psicossociais de mulheres em contextos urbanos?
Juliane Borsa: Nasci em uma cidade do interior, chamada Santiago, na região centro-oeste do Rio Grande do Sul. Lembro que desde pequena já imaginava minha vida em uma cidade maior, onde poderia ter acesso a novas experiências. Sempre fui bastante inquieta, fazia muita coisa acontecer, seja na escola ou na rua. Inclusive, matar aula para caminhar sem destino era algo que fazia com mais frequência do que deveria.

LS: Então já corria nas suas veias o sangue de uma flâneuse, né!?
JB:
Sim! Aos 16 anos me mudei para Santa Maria/RS para concluir o Ensino Médio. Fui morar com meu irmão, de 14, longe de casa e dos meus pais. Uma adolescente sem qualquer adulto por perto, você imagina como pude dar asas ao meu desejo de ser livre. E liberdade sempre foi o valor mais importante na minha vida! Lutei muito por ela e a conquistei! Em Santa Maria, me formei em Psicologia e logo mudei para Porto Alegre para fazer o mestrado e o doutorado. Depois morei um tempo fora do país e também 9 anos na zona sul do Rio, onde fazia tudo a pé ou de bicicleta. E viajei um bocado também. Andava sem rumo para conhecer lugares, pessoas, conversar, observar, sentir cheiros, ver paisagens diferentes, cores, contrastes. E em todas essas andanças, explorar os espaços urbanos sempre foi minha fonte de prazer. Gosto de gente, do caos organizado que a cidade oferece. Para mim é um parque de diversão, pois a cidade muda a cada segundo, a paisagem nunca é a mesma, seja porque um carro estacionou, uma porta fechou, uma placa foi instalada, ou um cachorro encostou para dormir ao sol em frente à padaria. Hoje, casada e mãe de dois, faço questão de ter meus momentos de flaneuse. Não abro mão dessa solitude que, ao mesmo tempo, é potência para tantos encontros e descobertas.

LS: E quando esse tema cruzou com o seu trabalho?
JB:
Por muitos anos trabalhei na clínica da infância. E sempre tive contato com as mães,  raramente tive acesso aos pais durante os atendimentos, eles estavam trabalhando, viajando, participando de encontros com amigos e reuniões inadiáveis. E o que me chamava atenção era a resignação dessas mulheres, que muitas vezes, estavam frustradas, se sentindo solitárias, reduzindo suas vidas ao casamento e à maternidade. Mulheres que nunca tinham viajado sozinhas, que abandonaram as amizades, com vergonha de ir à praia, que nunca tinham ido ao cinema com uma amiga. Aí olhava para minha história e para meus privilégios. Acredito que nossa responsabilidade deve ser proporcional aos nossos privilégios. E por conta disso, decidi pegar a mão dessas mulheres e ajudá-las a encontrar um caminho de empoderamento, de autoestima e para um senso mais positivo de si e de suas potencialidades. 

“A solidão muitas vezes nasce da sobrecarga de papéis e da falta de tempo para relações que nutrem de verdade. Além disso, questões como insegurança, desigualdade de gênero e experiências de violência ou assédio podem restringir o convívio social, gerando um isolamento silencioso”

LS: A OMS declarou em 2025 a solidão como uma epidemia global. Uma pesquisa da Organização apontou que no Brasil o índice de solidão é maior em mulheres do que homens. O que você acha que impulsiona esse sentimento?
JB:
Começo dizendo que a solidão é um fenômeno complexo, influenciado tanto por fatores individuais quanto sociais, e, no caso das mulheres, há elementos culturais e estruturais que ajudam a entender por que esse sentimento pode ser mais frequente. A solidão muitas vezes nasce da sobrecarga de papéis e da falta de tempo para relações que nutrem de verdade. Além disso, questões como insegurança, desigualdade de gênero e experiências de violência ou assédio podem restringir o convívio social, gerando um isolamento silencioso. Outro ponto importante, em termos de metodologia, é que, de maneira geral, as mulheres tendem a estar mais atentas às próprias emoções e a expressá-las com mais clareza, o que faz com que percebam e nomeiem a solidão de forma mais explícita ao serem questionadas sobre o tema.

LS: Como as mulheres podem virar esse jogo?
JB:
Nós mulheres costumamos buscar ativamente estratégias para quebrar o isolamento e sair de casa, seja para encontrar amigas, praticar um hobby ou participar de grupos, é uma das formas mais eficazes de reconexão. Não deixa de ser um paradoxo pois, embora a solidão possa ser um peso, também pode funcionar como um sinal de que é hora de buscar contato humano, pertencimento e experiências que fortaleçam a saúde mental. A chave está em reconhecer o sentimento e transformá-lo em ação, ampliando a rede de apoio e criando espaços de troca e acolhimento. A solidão pode ser dolorosa, mas também é um convite. Quando as mulheres reconhecem esse sentimento, muitas vezes transformam-no em movimento; saem de casa para encontrar afeto, pertencimento e novas experiências.

“A saúde social envolve sentir-se parte de um coletivo, perceber-se com valor e reconhecimento social e ter acesso a espaços de convivência seguros e respeitosos. Para as mulheres, essa dimensão se manifesta na forma como elas acessam os espaços públicos no seu dia a dia e em como somos capazes de construir redes de apoio efetivas”

LS: A saúde social é um assunto que esquentou muito este ano, depois de muitos especialistas falarem sobre ele no SXSW. Como a psicologia compreende o conceito desse tema, e de que maneira ele se manifesta no cotidiano das mulheres nas cidades?
JB:
Entende-se por saúde social a rede de relacionamentos interpessoais, incluindo os diferentes contextos de interação nos quais uma pessoa pode estar inserida (família, escola, trabalho, bairro, cidade, etc). Na intersecção da Psicologia com as abordagens feministas, a saúde social envolve sentir-se parte de um coletivo, perceber-se com valor e reconhecimento social e ter acesso a espaços de convivência seguros e respeitosos. Para as mulheres, essa dimensão se manifesta na forma como elas acessam os espaços públicos no seu dia a dia e em como somos capazes de construir redes de apoio efetivas. Além disso, saúde social também diz respeito a nos sentirmos autorizadas a ocupar espaços urbanos com autonomia, segurança e igualdade de direitos e deveres. No entanto, o machismo, a misoginia, o racismo e outras formas de opressão limitam o acesso a esses espaços, fazendo com que muitas mulheres vivam em alerta constante, o que compromete nossa sensação de pertencimento.

LS: O sentimento de pertencimento a um território ou comunidade pode influenciar a saúde mental das mulheres? Como isso se dá na prática?
JB: O pertencimento é uma necessidade psicológica básica de todo e qualquer ser humano, como demonstram as teorias sociais, do apego e do desenvolvimento humano.Sentir-se pertencente é peça chave para evitar o senso de exclusão e alienação. Isso é especialmente verdadeiro em grupos minoritários, como é o caso das mulheres. Isso se dá, por exemplo, quando uma mulher se reconhece no espaço urbano, quando sente que pode caminhar por determinadas ruas com liberdade e segurança, quando encontra pessoas que compartilham sua história, quando se sente acolhida e passa a nomear lugares e pessoas, incluindo-os nas suas conexões e memórias afetivas. Comprar no mercadinho da esquina, participar da feira de bairro ou integrar um projeto social: essas práticas ativam vínculos simbólicos que trazem bem-estar e regulam as emoções.

LS: E de que forma o medo e a sensação de insegurança nos espaços públicos afetam a experiência subjetiva das mulheres?
JB: O medo é um afeto estruturante da experiência urbana das mulheres, do que chamo “ser mulher no mundo”. As mulheres aprendem desde muito cedo a ocupar o espaço público com medo, hipervigilância e rotas mentais de fuga. A sensação de vulnerabilidade constante gera estados de alerta crônicos, associados a transtornos como ansiedade generalizada e estresse pós-traumático, além de afetar a autoestima e o senso de merecimento e justiça. Do ponto de vista subjetivo, muitas mulheres acabam internalizando a ideia de que não têm direito à cidade, o que alimenta um sentimento de invisibilidade e inadequação e retro alimenta o status quo vigente (um mundo de homens, construído por homens e para os homens). 

“Experiências coletivas atuam como zonas temporárias de reconexão com os outros e consigo mesma. A partir desse lugar de encontro, muitas mulheres conseguem elaborar suas vivências e visualizar caminhos de mudanças. A esperança surge na
ação compartilhada”


LS: Hoje as pessoas se conectam muito umas com as outras em territórios digitais. O que a conexão real, humana, na rua, pode oferecer que o digital jamais alcançará?
JB: A conexão digital tem ampliado horizontes de troca, visibilidade e mobilização política para as mulheres, mas jamais substituirá o poder do toque, do abraço e da presença física. A presença física é feita de gestos, olhares, toques, cheiros, sons e silêncios que produzem um tipo de afeto e de empatia que o virtual não consegue acessar totalmente. Não gosto de cair nesse lugar rabugento que nega o valor das redes sociais (que aliás, foi importante para manter algum nível de sanidade nas pessoas durante a pandemia), mas reconheço que a vivência do espaço público é também a vivência do corpo em movimento, do outro que se atravessa no caminho, do cheiro do café partilhado, da criança que corre na praça e de tantas experiências diluídas na rotina de quem é de carne e osso e circula pelos espaços comuns. 

LS: E que papel os encontros coletivos em praças, centros culturais desempenham na construção de esperança e sentido de futuro para mulheres que vivem em grandes centros urbanos?
JB: Os encontros coletivos são experiências psicossociais e políticas de grande potência para mulheres que moram em grandes cidades. Esses espaços são muitas vezes marcados pelo anonimato, pela pressa, pelo estresse, pela fragmentação dos vínculos e pela perda de noção do tempo e do que é prioridade. E é nesse sentido que essas experiências coletivas atuam como zonas temporárias de reconexão com os outros e consigo mesma. A partir desse lugar de encontro, do “entre”, muitas mulheres conseguem elaborar suas vivências de sofrimento, identificar opressões comuns e visualizar caminhos de mudanças. Além disso, ao compartilhar dores e conquistas, resgatam a ideia de que o futuro pode ser diferente, possível, habitável. A esperança surge na ação compartilhada.

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